Peça usa mito de Sherazade para falar de violência contra mulher

Peça usa mito de Sherazade para falar de violência contra mulher

Em cartaz no Teatro Municipal Ziembinski, na Tijuca, a adaptação do livro da escritora Libanesa Joumana Haddad critica uma das personagens mais famosas da literatura oriental

Por Vinicius Rodrigues

           Poster de divulgação da peça Eu Matei Sherazade. Foto: Instagram Teatro Municipal Ziembinski

No último dia 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra a Mulher,  foi divulgado que uma mulher é morta por feminicídio a cada 10 minutos no mundo. Em meio a este cenário, uma peça de teatro tem chamado a atenção para este grave problema enfrentado pelas mulheres: “Eu matei Sherazade, confissões de uma árabe em fúria”.

A peça é a adaptação livre do livro de Joumana Haddad em solo brasileiro, idealizada e protagonizada pela atriz Carol Chalita, com direção de Miwa Yanagizawa e trilha sonora original de Beto Lemos. O monólogo aproxima a realidade da mulher árabe da mulher brasileira, e está em cartaz até 15 de dezembro no Teatro Municipal Ziembinski, próximo à estação de metrô São Francisco Xavier, na Tijuca, Zona Norte do Rio, às sextas, 20h, e aos sábados e domingos, às 19h. Os ingressos custam entre R$25 e R$50, e podem ser comprados na bilheteria do teatro ou online no site  Teatro Municipal Ziembinski

A peça tem valor promocional para estudantes e servidores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro(Uerj): R$20, na bilheteria do teatro, só é necessário informar que veio pela Uerj.

O conto clássico árabe As Mil e uma noites, muito famoso no Oriente Médio, conta a história de um rei que foi traído por uma de suas esposas, e como punição, a mata. Além disso, rancoroso pela traição, ele passa a se casar com moças virgens do seu reino e matá-las ao amanhecer, como forma de vingança. Então, entra Sherazade, a moça que irá quebrar esta corrente de violência contra as mulheres. Ela casa-se com o rei assassino, e para evitar ser morta, passa a contar histórias a ele, e as interrompe antes do amanhecer, tática que se estica por mil e uma noites. Dessa forma, Sherazade consegue fazer o assassino se afeiçoar a ela, que desfaz o rito das mortes e salva as mulheres do reino.

A personagem Sherazade foi cultuada como uma figura de força feminina por tempos ao redor do mundo, algo que a escritora, ativista e jornalista libanesa Joumana Haddad discorda, e critica em seu livro Eu matei Sherazade, confissões de uma árabe em fúria, que visa desmistificar esta

personagem clássica, através do olhar de uma mulher no mundo árabe, em que a morte de Sherazade simboliza o fim da submissão das mulheres diante do patriarcado.

O Notícias da Vila conversou com a atriz Carol Chalita sobre a adaptação da obra e a sua importância no Brasil:

Qual a importância da peça Eu Matei Sherazade no Brasil?

É entender que a relação da mulher e da formação do feminino independe de qualquer cultura, pois a cultura patriarcal é globalizada. Então, trazer o texto de uma mulher árabe, libanesa, que carrega em si um monte de preconceitos em ser uma mulher árabe, como se a mulher árabe não tivesse uma objetividade ou liberdade, não tivesse nenhum tipo de revolta sobre a cultura patriarcal opressora, já é um erro. E trazer esse texto para o Brasil significa aproximar a realidade da mulher árabe para a da mulher brasileira, e dizer que os problemas de lá são os mesmo daqui. É alarmante que o Brasil é o quarto país em feminicídios do mundo, e se aproxima do Afeganistão com a lei antiaborto que os políticos querem aprovar. Logo, a verdade é aproximar as realidades e questionar, desvelar os véus da sociedade brasileira sobre o problema crônico que é a violência contra as mulheres no Brasil.

Como foi adaptar o livro Eu Matei Sherazade para teatro?  Houve muitas mudanças para o contexto brasileiro?

Na verdade, a gente selecionou o que fazia sentido para mim, como artista, o que eu queria, o que eu tinha desejo de falar, e eram muitas coisas. A gente se surpreendeu muito como se aproxima da nossa realidade, de ser mulher no Brasil. A gente acrescentou o mito de Sherazade, inicialmente na peça, que não está no livro da Joumana, para poder mostrar quem é ela, e do maior arquétipo feminista árabe, que, na verdade a Joumana oferece um novo olhar sobre arquétipo, que, na verdade, ela não subverte a lógica da submissão, mas com seus dotes e inteligência, ela ainda precisa subornar o homem com as suas histórias intermináveis das mil e uma noites para sobreviver. Então, ela não pode viver a vida que ela escolheu ser, ela ainda está presa como subalterna de um homem. Logo, nós colocamos esse mito inicial para poder mostrar o quão não queremos negociar nenhum tipo de liberdade, nenhum tipo de vontade, pois isso é uma sobrevida. A mulher não tem que agradar um homem para ela sentir que está salva. Ela não tem que dar para ele nada do que a gente tem que ele queira para se sentir segura. A gente tem que se sentir segura por simplesmente se existir mulher. A questão de matar Sherazade é que não queremos mais esse arquétipo de subornar um homem para sobreviver. Não temos que subornar ninguém para sobreviver. Nós temos que simplesmente existir.

Para você, como atriz, houve algum desafio para fazer esta peça no Brasil?

É um projeto que tem 11 anos que ele foi concebido e idealizado, que só agora, depois desses 11 anos, eu consegui fazer sem patrocínio, sem nada, a não ser na pandemia, que conseguimos fazer um experimento online pela lei Aldir Blanc. Mas as empresas não têm muito interesse em falar sobre a liberdade feminina. Até mesmo as empresas com bandeiras sobre o feminismo, eu senti uma resistência. Até porque, nós trazemos uma árabe falando de uma forma crua e sem pudor, e colocando o dedo em feridas muito nevrálgicas da nossa sociedade brasileira, ela escancara uma hipocrisia brasileira, apesar de estar falando da realidade árabe, que muitas empresas não tinham o interesse no tema. A liberdade feminina ainda é um tabu, a liberdade sexual feminina, a liberdade de mulheres no poder, de liderança feminina ainda tem uma força muito oposta para que a gente fique no apagamento. Existe um medo muito grande de mulheres estarem em liderança, pois nós temos muito poder. E isso assusta os homens. A gente lida agora com uma sociedade na minha cabeça que é o tempo das Valkírias: são mulheres independentes, mulheres que têm sua vida, sua vida financeira, sua liberdade sexual e é por isso que o feminicídio tem aumentado tanto. Os homens não estão sabendo lidar com a liberdade feminina. Logo, eu acho que vivemos os tempos das Valkírias, e essa repreensão violenta sobre os nossos corpos têm tudo a ver com a gente estar aumentando o nosso espaço de liberdade.

Recentemente, na Câmara de deputados, foi aprovada uma PEC que pode acabar com o aborto legal no Brasil. Diante disso, qual o papel da arte, da peça, para debater e ajudar a compreender as necessidades e direitos das mulheres no país?

Essa PEC que estão tentando aprovar só reforça essa cultura patriarcal opressora e assassina que está se sentindo ameaçada, e eles precisam ter poder sobre os nossos corpos, e o aborto é uma das formas. Eu acho que a Joumana Haddad deixa um legado para nós no Brasil: ela foi eleita pelo voto direto para exercer um cargo no parlamento libanês e os homens não deixaram ela exercer o cargo. E ela manteve a força de resistência. Então, ela criou um programa, ela não para de escrever, ela não para de falar sobre o assunto, e ela disse: “me perguntam muitas vezes porque eu continuo escrevendo livros? Será que isso tem eficácia?. Quanto mais eu escrevo, quanto mais eu falo, maior poder eu tenho de entrar na mentalidade das pessoas”. Logo, esse é o nosso papel na arte, a gente combater de forma lúdica, trazendo sempre polêmicas e tirando do conforto a nossa realidade. Cada vez mais fazer essa peça, a gente está levantando essa bandeira de conscientização para homens e mulheres dos nossos deveres, e ressignificar os padrões de relação. Pois, os padrões de relação que estão aí não funcionam, são padrões assassinos. Então, nós trazemos através da arte uma provocação que fique dentro de cada um que assistir à peça, uma possibilidade de refazer seus pactos dentro do seu ambiente, seja na sua casa, na sua família ou no seu trabalho.

Como você espera que o público saia após assistir à peça Eu Matei Sherazade?

O que eu espero já está acontecendo, pois as pessoas estão saindo arrebatadas da peça, elas estão repensando suas vidas, elas repensam seus relacionamentos, tanto homens, quanto mulheres sobre como essa formação patriarcal tem sido nociva para gente construir o imaginário social de que homens e mulheres tenham equidade de gênero, que tenham direitos parecidos, direitos que não oprimam uns aos outros, mas que sejam complementares, que sejam uma troca, que sejam uma relação absolutamente frutífera que some, não que elimine um para o outro existir. O que a gente vê, na verdade, a violência doméstica não só fere a mulher que é vítima, mas toda uma família, toda uma sociedade, e inclusive os serviços de saúde, pois é uma destruição em massa. Imagina o psicológico de uma criança que vê o pai assassinando a mãe. Enfim, eu acho que a peça traz à tona esse lugar, essa construção, essa mentalidade patriarcal que precisa ser absolutamente desconstruída e revista. E o lugar da mulher onde ela tenha coragem de querer ser o que ela quiser ser na hora que ela quiser e quando ela quiser. É um estado de impermanência, ela pode ser tudo o que ela quiser na hora que ela quiser, ela pode mudar completamente da água  para o vinho quando ela quiser. É um lugar de estado de liberdade mesmo. Eu espero que a peça provoque isso, e ela está provocando, e mais do que isso. Que a gente fique em cartaz por muitos anos, para estar trazendo esse tipo de discussão, e pensar de que forma nós influenciamos as próximas gerações, para que daqui a alguns anos, a gente não precise fazer essa peça, que sejam novas discussões. É isso que eu espero. Que o público cada vez vá mais ao teatro, ampliando cada vez mais as possibilidades de transformações em suas vidas.

Peça usa mito de Sherazade para falar de violência contra mulher

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