FCS – Pensa Pandemia #36 – Débora de Lima do Carmo

Educação Infantil na pandemia: rotina de afetos, desafios e obstáculos

“Eu confio nas crianças”, enfatiza a mestra em Educação pela UFRJ Débora de Lima do Carmo em entrevista à 36ª edição do FCS pensa a pandemia. Motivos não faltam para confiar, embora ela exponha na conversa os imensos desafios que a pandemia tem gerado no universo da Educação Infantil. Professora do Centro de Referência em Educação Infantil Realengo do Colégio Pedro II, ela aborda as mudanças feitas na unidade para continuar atendendo a demanda em meio à pandemia: no início da crise sanitária, o esforço foi para a “manutenção de vínculos entre escola e crianças”, com o mapeamento da situação das famílias, muitas delas moradoras da periferia da cidade do Rio. Arrecadação de cestas básicas, sala virtual de música e blog com conteúdo audiovisual foram iniciativas desenvolvidas. Com a pandemia se estendendo em 2021, uma rotina mais estruturada para encontros online das turmas foi organizada, o que não encerrou os problemas diante da falta de recursos para auxiliar as famílias e das condições de vida e trabalho do próprio corpo docente, formado em sua maioria por mulheres e, portanto, envolvidas nas tramas diárias de cuidado e organização doméstica. “Se nossa categoria já estava precarizada, isso piorou no contexto pandêmico”, desabafa Débora de Lima.

Na conversa com o Fpp, Débora de Lima reflete a respeito da importância dos vínculos afetivos feitos na escola, que continuaram por meio de outros caminhos, e exemplifica como a pandemia tem prejudicado esses laços. Reiterando que a escola é um importante espaço, mas não o único, de socialização das crianças, ela destaca que os encontros virtuais não são aulas e que o foco, independente do contexto, deve ser a criança e suas narrativas. “A vida para a criança acontece no aqui e no agora. Eu quero saber o que ela está pensando agora, o que ela está sonhando, como ela está elaborando tudo que estamos vivendo. […] o olhar da criança está no miúdo dos acontecimentos, pode ser uma fresta na parede ou uma aranha desavisada”, observa na conversa, abordando ainda a relação com os responsáveis, que aprendem e exigem, o cenário de desigualdades exacerbado pela pandemia, a singularidade da escola nesse contexto e o projeto educacional em curso da atual gestão federal. Apesar de tudo, ela diz, o otimismo é mais do que necessário, assim com a “esperança com criticidade”. 

Confira.

Débora de Lima

FCS pensa a pandemia – A crise da covid-19 afetou diretamente o universo da educação. Como tem sido a rotina de professora do ensino infantil nesses tempos?

Débora de Lima do Carmo – Eu sou professora do Centro de Referência em Educação Infantil Realengo do Colégio Pedro II – CREIR, na zona oeste do Rio de Janeiro. A escola é pública e gratuita. E já gostaria de pontuar que não nos referimos à primeira etapa da Educação Básica enquanto ensino infantil e, sim, Educação Infantil.  Essa diferenciação se faz necessária, pois no campo de atendimento às crianças nessa primeira etapa de escolarização as relações entre discentes e docentes adentram as dimensões
do cuidar e educar, dimensões indissociáveis segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil (DCNEI -2009).  

Nesse sentido, dizer “ensino infantil” traria um caráter de instrumentalização dessa relação que é tão complexa, principalmente quando temos em vista crianças de zero a três anos. Bom, na Educação Infantil do Colégio Pedro II adotamos no primeiro ano de

pandemia um trabalho que se definia como manutenção de vínculos entre escola e crianças. Reafirmamos desde o início dessa situação pandêmica a incompatibilidade de trabalho a distância com crianças pequenas. Portanto, não estruturamos nenhuma dinâmica de “ensino”, mas mapeamento para compreendermos as situações das famílias, visto que a escola atende um quantitativo significativo de famílias moradoras da periferia carioca. A partir desse mapeamento houve uma organização entre os servidores para a arrecadação de cestas básicas para as famílias e entrega de uma “caixa inventiva” – caixa contendo papel, material gráfico e plástico, entre outros, somente para as crianças que foram contempladas com a cesta básica. Também havia encontros em sala virtual com os professores de música para as crianças das turmas da escola. 

No blog da escola (www.cp2.g12.br/blog/creir) alimentávamos memórias escolares através do que chamamos de “gotículas de afeto”, trazendo fotos e vídeos, entre outros materiais que ilustravam o cotidiano vivido nos anos anteriores com as crianças para que pudéssemos manter viva a escola na qual acreditamos. Já iniciando 2021, e ainda vivendo a pandemia, chegamos a uma rotina mais sistematizada para encontros virtuais com cada turma da escola. Infinitas reuniões para mensurar o tempo e a frequência de encontros virtuais para as crianças tendo como referência o que a Sociedade Brasileira de Pediatria dizia sobre o tempo limite de exposição às telas.  

Um quebra-cabeça! A escola oferece o Auxílio Digital aos estudantes quese inscrevem para edital e atendem aos critérios estabelecidos pelo setor. No entanto, não há verba que alcance tamanha demanda atual de famílias que necessitam deste auxílio. Muitas das crianças não tiveram acesso aos encontros virtuais até o momento. E, nesse cenário todo, estão as professoras e professores de Educação Infantil. Nessa etapa de escolarização, a sua grande maioria é composta de mulheres, já sobrecarregadas com as demandas domésticas. Administrar casa, família dos estudantes, sua própria família, exigências burocráticas da escola, construir planejamentos pedagógicos, criar propostas para lançar na plataforma da escola direcionada às crianças de forma precisa para que os responsáveis – que são seus mediadores nesse momento – compreendam, gerenciar a ansiedade com ameaça de abertura da escola a todo momento, mais a pressão da mídia que reforça o discurso “as crianças estão perdendo o ano” enquanto ela mesma não pressiona para que possamos ser logo vacinados…tudo isso tem nos exaurido. Se nossa categoria já estava precarizada, isso piorou no contexto pandêmico.

 

Fpp – A escola é espaço de aprendizado, alfabetização, socialização e troca de afetos para as crianças. De que forma a interrupção dos vínculos com os colegas e os docentes afeta essa relação?

DLC – A escola é mais um espaço de socialização das crianças, mas não é o único.  Ela é um espaço público institucional onde todas as crianças a partir de quatro anos são obrigadas a frequentar. Foi preocupada com a interrupção dos vínculos que o CREIR construiu desde o início da pandemia as propostas que mencionei anteriormente. A gente só se constitui humano com outro humano. É na interação que a gente constrói nossa humanidade, como afirma [o psicólogo Lev] Vygostky. O isolamento social foi e continua sendo uma medida necessária, mas quando ela não tem previsão de término, como é o nosso caso com o descaso do governo federal, isso nos adoece. Tivemos relatos de famílias sobre crianças com medo de outras crianças ao se encontrarem em ambientes externos, tais como praça. É óbvio que pensar em processos de aprendizagem e socialização para algumas crianças que têm essas marcas envolve uma abordagem multisetorial: é a escola, mas também a família, a assistência social, o atendimento médico, projetos para se pensar a cidade, etc. A interrupção desses vínculos é a interrupção de um processo. Interrupção do processo para a criança descobrir a si mesma como mais uma pessoa no mundo e não a única e aprender nas situações de conflito ao lidar com um ambiente pluriversal como é a escola pública, por exemplo, de construção de autonomia, de ser provocada a pensar, de ser desafiada e conhecer suas habilidades num contexto fomentador. Temos crianças que, na escola, se serviam e comiam sozinhas no refeitório, mas que no ambiente doméstico só comem se derem na boca. E isso fala mais sobre os adultos do que sobre as crianças, porque elas demonstraram ser capazes. Eu confio nas crianças. Elas já me mostraram de diversas maneiras sua capacidade de se reinventarem.

 
Fpp – O ensino remoto foi a alternativa encontrada para suprir a ausência do espaço escolar.  Em que medida o espaço doméstico e a mediação virtual conseguem repor os benefícios e vantagens do convívio presencial no contexto da Educação Infantil?

DLC – O espaço escolar é só mais um espaço. Avalio que, mesmo antes da pandemia, muitas outras ausências já habitavam o cenário das crianças, tais como o direito ao espaço da rua e da praça, por exemplo. O espaço das crianças tem sido o espaço privatizado, comercializado muitas vezes, como o dos shoppings centers. Parece que o espaço público não gosta muito de crianças, principalmente crianças das classes populares. E temo por alguns espaços domésticos onde essas crianças estão. No contexto da Educação Infantil, os encontros remotos afirmaram a dimensão do cuidado com o outro, com o discente e sua família. São nesses encontros (e não aulas) que temos notícias através das narrativas das próprias crianças do dente que caiu, do irmão que vai nascer, de seus aborrecimentos, do cabelo que cortou, de suas “invencionices”. Eu não entendo essa relação como “reposição”. É do senso comum olhar para a criança como “falta”, ‘menor”, “não entende porque é pequeno”, “o que ela não sabe”, “eu sei o que é melhor para ela”. Essa relação verticalizada escancara a arrogância do adulto. A vida para a criança acontece no aqui e no agora. Eu quero saber o que ela está pensando agora, no que ela está sonhando, como ela está elaborando tudo que estamos vivendo. Nas DCNEI está escrito que a centralidade do planejamento do trabalho pedagógico nesta etapa é a criança, então eu não tenho que suprir nada, eu tenho é que manter meu interesse pela criança no horizonte do meu trabalho. E o olhar da criança está no miúdo dos acontecimentos, pode ser uma fresta na parede ou uma aranha desavisada. As crianças se relacionam com o mundo de uma forma que nós, adultos, esquecemos, endurecemos. É uma outra lógica. Mas, de forma objetiva, a mediação virtual consegue manter o que no presencial é fundamental, ouvir o que as crianças têm a dizer. Elas têm muito a nos ensinar.


Fpp – A escola também está envolvida nas relações de cuidado, posto que é o espaço onde os pais/responsáveis podem confiar os filhos enquanto trabalham. Como tem sido o diálogo com pais/responsáveis e que avaliação é possível fazer sobre os efeitos desse cenário?

DLC – Os responsáveis têm sido nossos principais parceiros para que os encontros virtuais aconteçam. É preciso ter um adulto próximo à criança quando estamos nas salas virtuais e eles estão nos ouvindo, ouvindo seus filhos, ouvindo as demais crianças. Nunca estivemos tão próximo das famílias. Estamos dentro da casa deles, assim como eles estão nas nossas. É uma oportunidade única que nós, da Educação Infantil, temos de demarcar a intencionalidade pedagógica do nosso trabalho ainda com uma visão tão assistencialista por parte das famílias. Lá na escola, por exemplo, lançamos propostas na plataforma do Colégio para que os responsáveis acessem dando orientações de como abordar determinados temas com as crianças. Sugerimos leituras, compartilhamos link de vídeos, enfim, materiais que possam ampliar o repertório literário das crianças e oportunizar acesso ao patrimônio histórico cultural da humanidade. Mas, para as famílias, tudo é novidade. Muitas das vezes eles ficam atrapalhados com a ativação do microfone e da câmera, em como sair da chamada, enfim, lidar com o funcionamento tecnológico. Então, eles também estão em processo de aprendizagem. E ainda tem o agravante, nessa alteração de rotina das famílias, que é lidar com o trabalho remoto dos responsáveis, aula remota dos irmãos mais velhos ou até mesmo a incompatibilidade de horários, visto que muitos responsáveis precisam trabalhar presencialmente. Por isso, é comum vermos avós, avôs, tias e tios acompanhando os encontros virtuais das crianças. E, nesses encontros geracionais, todos estão aprendendo frente à tela. No entanto, para as turmas com crianças de cinco e seis anos, os desafios são bem diferentes, pois há uma pressão das famílias a respeito da alfabetização, medo do estudante “não dar conta” do próximo ano, exigência de “deveres de casa”. Os medos e ansiedades das famílias são compreensíveis, mas precisamos repetir diversas vezes que a alfabetização sistematizada é conteúdo do ensino fundamental e que antecipar conteúdos de outras etapas fere o artigo 11 da DCENI que versa sobre esse tema.


Fpp – Olhando a partir das práticas no campo da educação, um evento como a pandemia era algo tematizado e debatido? Como a covid-19 tem transformado as discussões sobre o papel da escola e da Educação Infantil?

DLC – Posso dizer que o tema das desigualdades sociais era e continua sendo algo para ser debatido dentro do campo da educação na relação universidade-escola. A pandemia só agravou duramente as desigualdades sociais. A vulnerabilidade social das crianças, as condições materiais de suas famílias, o sucateamento das escolas públicas, a precarização do trabalho docente, temas que a covid-19 não transformou em discussão, mas escancarou como um problema de décadas do ensino público do país. Realengo é um bairro muito quente, quando falta água, o que acontece? E, quando chove, alaga tudo ao redor. A gente até pedia no presencial que as famílias enviassem galochas para as crianças. Com a pandemia, o campo da saúde retorna a compor o grupo de discussões sobre o trabalho da escola. Um protocolo rigoroso diante de uma escola que, às vezes, não tem água. Como fazer? Um protocolo que desnuda as escolas porque muitas delas nunca tiveram sistemas de ventilação adequados, material de higiene sempre reposto, enfim. Ao mesmo tempo essa aproximação nos fez convocar os diferentes setores para pensar a escola juntos. Pensar junto e não transformar a escola em outra coisa. Ela não é posto médico, nem hospital nem espaço para a prática dos serviços prestados pela assistência social e muito menos lugar para os “amigos” dela que devagar vão fazendo dessa relação um projeto privado. A escola é uma instituição própria e com legislação própria.


Fpp – Por fim, que tipo de cenário é possível prever no pós-pandemia em termos de formação social, intelectual e psicológica das crianças, levando em conta que o acesso à educação no país é marcado por desigualdades? Dá para ser otimista?

DCL – Eu preciso ser otimista. E me ancoro nas palavras de Paulo Freire, que em setembro faria cem anos. Ele dizia que a desesperança é um projeto de desmobilização da sociedade e que a gente precisa insistir na esperança com criticidade. Se a gente tem compromisso com a emancipação social, olha, temos muito trabalho aí nesse pós-pandemia porque o projeto em curso está passando como um trator destruindo todos os direitos conquistados. A proposta de emenda constitucional que congela os gastos por vinte anos com a educação, por exemplo, foi um trator. Taxação de livro, programa de livro didático que diz que ditadura foi revolução, alfabetização que remete à velha cartilha já superada no campo teórico, etc. Eu não quero compactuar com uma educação bancária e tecnicista.

Débora de Lima do Carmo é mestra em Educação pela UFRJ. Graduada em Pedagogia pela UFF, tem especialização em Arte e Cultura pela UCAM e em Educação Infantil pela PUC-RJ. É professora do Colégio Pedro II, unidade Realengo.

Fábio Grotz Majerowicz é jornalista e bolsista Qualitec do Laboratório de Comunicação Integrada (LCI/FCS/UERJ). Doutor em Comunicação pela UERJ, tem experiência de trabalho e pesquisa nos campos dos Direitos Humanos e Saúde.