Para especialistas, lobbies e concentração midiática ameaçam a existência do jornalismo

Para especialistas, lobbies e concentração midiática ameaçam a existência do jornalismo

Mesa do Festival 3i debate alternativas para o fomento da atividade jornalística e levanta desafios para o futuro

Por: Davi Guedes

Mesa de debates de modelo de política pública no jornalismo; Festival 3i. Créditos: Davi Guedes

Como exercer jornalismo em tempos de tantas mudanças e incertezas? Uma das mesas do Festival 3i tratou desse tema, discutindo a influência de lobbies internacionais e a concentração intensa de veículos de mídia pelo mundo – questões que, para as participantes, chegam mesmo a ameaçar a existência do jornalismo tal como conhecemos.  A palestra, realizada no dia 16 de junho, também discutiu alternativas para fazer frente a essas ameaças.

Participaram do debate Laura Becanna, coordenadora auxiliar do Global Forum of Media Development (GFMD), organização supranacional de pesquisa e suporte ao jornalismo, Anna Burgman, do Rebuild Local News, instituto de fomento ao jornalismo local dos EUA, e Giovana Tiziani, da Secretaria de Políticas Digitais da Secom (Secretaria de Comunicação Social).

Laura Becanna alertou para a presença de lobbies de grandes companhias e interesses, que, em sua avaliação, capturam grandes veículos de mídia. Defendeu também a descentralização midiática como forma de diluição dessa influência. Ela argumentou que é impossível produzir um jornalismo de interesse público, quando este está preso a interesses externos. No caso da organização em que trabalha, a GFMD na Europa, ela destaca a importância do investimento em pesquisas para entender mais precisamente os riscos e influências que o jornalismo enfrenta, e recomenda que essas ações sejam tomadas em cada região do planeta, para o entendimento das suas questões particulares.

“São muitos os elementos que ameaçam a existência do jornalismo para o futuro”, afirma Laura. Segundo ela, o investimento em educação midiática é importante num cenário marcado pelo aumento da circulação de conteúdos de desinformação. Ela afirmou que países nórdicos, como a Dinamarca, já investem nessa proposta, com o objetivo de salientar a importância do jornalismo e do uso correto das ferramentas de acesso à informação a fim de garantir qualidade informacional – tudo isso em um futuro no qual a forma do jornalismo e o avanço tecnológico ainda são incertos.

Anna Burgman observou que, nos Estados Unidos, o processo de produção de notícias de portais independentes está se tornando algo cada vez mais de interesse da esfera estadual norte-americana. Ela defendeu que, com órgãos públicos estaduais investindo em jornalismo local, os processos de fomento tendem a ser mais capacitados e estimulados, pela proximidade maior com questões locais. Anna disse ainda que, no começo de um portal, o maior desafio é a obtenção de leitores para sustentar um jornal, e afirmou que  trabalhar com pautas locais pode ser um meio de contornar esse problema.

Para o Brasil, Giovana Tiziane, da Secom, criticou a concentração midiática e defendeu a importância da descentralização. O último relatório do Media Ownership Monitor, órgão internacional que faz levantamentos sobre o mercado de mídia, apontou que 4 emissoras concentram 70% da audiência nacional. Vale ressaltar que o Brasil não tem uma regulação sobre o fato de uma mesma companhia possuir diversos canais (jornal, portal, canal, rádio, etc.) jornalísticos de uma vez, como há em outros países, a exemplo dos EUA.

Ainda que reconhecendo a importância da descentralização, a especialista da Secom falou da dificuldade na obtenção de fomento, tanto público, quanto privado, para promover iniciativas independentes de modo satisfatório. E complementou dizendo ser muito importante que o governo brasileiro ancore suas leis e propostas em modelos internacionais, aderindo ao que for cabível nacionalmente, a fim de estimular a promoção de um jornalismo mais plural e livre.

 

Jornalismo de território ganha força para combater desertos de notícia

Jornalismo de território ganha força para combater desertos de notícia

Metade dos municípios brasileiros não conta com veículos locais, e região Nordeste é proporcionalmente a mais afetada

Por: Davi Guedes

                                                                                          Reprodução: Freepik

Quase metade dos municípios brasileiros são desertos de notícia, aponta o levantamento de 2023 do Atlas da Notícia. Desertos de notícia são regiões onde não há veículos de imprensa locais, em nenhum formato, para cobrir acontecimentos regionais. Por se tratarem de localidades com baixa população e, muitas vezes, afastadas das capitais, grandes veículos praticamente nunca fazem cobertura dessas regiões.

O Festival 3i, realizado semana passada no Rio, destacou experiências valiosas para combater os desertos de notícias: as iniciativas de jornalismo local, com projetos realizados fora dos grandes centros, por jornalistas independentes.

Algumas dessas iniciativas foram apresentadas na mesa “Ambiente Informacional da Amazônia”, do festival 3i . Vanessa Vieira, palestrante da mesa e idealizadora do jornal digital Correio do Lavrado, de Roraima – onde dois terços dos municípios em situação de deserto de notícias –  afirmou que a falta de cobertura midiática na maior parte do estado abre espaço para práticas ilegais passarem impunes. Disse também que a ausência de jornalismo local afeta a própria percepção dos cidadãos dessas regiões de si próprios. Segundo  Vanessa, sem portais locais específicos, mesmo a produção de reportagens de veículos maiores exteriores, quando raramente acontecem, é muito dificultada, pela falta de apurações básicas preexistentes.

Vanessa relata que há muitas dificuldades em manter jornais independentes, e a maior delas é financeira. Com a falta de incentivos, faltam também iniciativas, ainda que essa seja a modalidade dominante no número absoluto de veículos regionais. 

“A gente não consegue se manter financeiramente sendo jornalista independente, estamos sempre atrás de editais”, completa.

Mais dados sobre deserto de notícia

A região Nordeste lidera o ranking dos desertos de notícia, com  56,7% dos seus municípios nessa situação. Os estados do Piauí e do Rio Grande do Norte encontram-se nas piores situações, com mais de 70% dos municípios sem cobertura local.

O Rio de Janeiro tem 7 de seus 92 municípios nessa situação, sendo o estado com o menor índice de desertos no Brasil. Em todo o país, em números brutos, há 26,7 milhões de pessoas vivendo em desertos de notícias (13,2% da população).

O Atlas da Notícia também propõe a classificação de “quase desertos de notícia”, que diz respeito a locais com até dois veículos regionais, os quais muitas vezes são mais vulneráveis a serem fechados ou a passarem por uma interferência política ou empresarial externa. Somando-se desertos e quase desertos, 77,48% dos municípios brasileiros estão em uma dessas duas situações.

A boa notícia, apesar dos números ainda expressivos, é que o total de municípios sem portais locais vem em contínua queda. Pela primeira vez desde o início do levantamento (2017),  a proporção de não-desertos é maior que a de desertos.

                                                                                        Fonte: Atlas da Notícia

                                                       Gráfico comparativo dos últimos quatro levantamentos

Os principais motivos para a redução dos desertos de notícia são a catalogação de portais não mapeados anteriormente, além do surgimento de veículos digitais e de iniciativas na área do rádio, como podcasts. Ambas as modalidades são dominantes numericamente no total de veículos locais de comunicação.