Fazendeiros atacam com armas grupos indígenas no MS

Fazendeiros atacam com armas grupos indígenas no MS

Povo Kaiowá-Guarani foram alvo de tiros e vigilância de drones e caminhonetes 

Por: Beatriz Araujo e Manoela Oliveira

Chamada de apoio do povo Kaiowá-Guarani / Fonte: Instagram da Aty Guasu

Centenas de famílias indígenas Guarani Kaiowá têm sofrido ataques armados por fazendeiros e latifundiários após iniciarem a autodemarcação de seu tekoha (“lugar onde se é”, em guarani) no dia 13 de julho. O território, localizado em Douradina, Mato Grosso do Sul (MS), ocupa mais de 9 mil hectares, o equivalente a aproximadamente 35,3% da área total do município. A Assembleia Geral dos Povos Indígenas Guarani e Kaiowá, a Aty Guasu, tem denunciado a situação da comunidade nas redes sociais. Em imagens divulgadas por eles, fazendeiros aparecem ateando fogo no campo, atirando com foguetes e armas de fogo nos indígenas. Além da reivindicação pelo território ancestral, a retomada também visa cessar o despejo de agrotóxicos nas proximidades das residências e das nascentes utilizadas para o consumo de água pelos produtores rurais. 

A retomada denominada Pyaru Yvyajere reinvindica a Terra Indígena Panambi Lagoa Rica, reconhecida em 2011 pelo Governo Federal, mas aguarda desde então a homologação do processo demarcatório. “A gente esperou demais e nada de resposta, então, como comunidade, nós conversamos e chegamos à conclusão de fazer a autodemarcação geral”, conta a indígena Daniela Jorge João. 

Terra Indígena Panambi Lagoa Rica / Fonte: Terras Indígenas no Brasil

Os produtores rurais, no entanto, alegam serem proprietários legais da área e reagiram à situação organizando acampamentos e um cerco de caminhonetes a poucos metros do local da retomada. Em um vídeo gravado por eles, frases em tom de ameaça como “o bambu vai envergar” e “a tropa de choque está chegando” foram veiculadas como forma de ataque à resistência. 

O conflito já deixou mais de 10 indígenas feridos por ataques e disparos de arma de fogo, entre eles um levou um tiro na cabeça e outro no pescoço. Kisa Aquino, indígena também presente na retomada, relata que helicópteros e drones rodam o local para identificar e perseguir os envolvidos na retomada. “A gente sabe que eles soltam os drones em cima da gente porque eles querem ver quantas pessoas, crianças e idosos estão aqui e planejar o ataque. É um terror saber que estamos sendo vigiados e não podemos fazer nada”, completa. 

Agentes do Departamento de Operações de Fronteira (DOF) controlam o acesso à comunidade, fotografando documentos e placas dos veículos, além de coletar informações sobre a retomada, a quantidade de pessoas e as lideranças, segundo o Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Para Mônica Cristina Lima, professora da Universidade Indígena Pluriétnica Aldeia Marakanã, a presença do Departamento reprime os indígenas e pessoas de outros movimentos sociais que vão ao local apoiar a retomada. Ela destaca também que o DOF, apesar de ser uma entidade policial da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (SEJUSP), tem muita ligação com os latifundiários e isso gera uma desconfiança dos Guarani-Kaiowá com o departamento. “Todas às vezes em que eles retomam uma área, os policiais e os sargentos aposentados que estão presentes nesses grupos de pessoas que os atacam, também estão nas empresas de segurança”.

Resistência dos Guarani-Kaiowá no tekoha 

Cerca de 10 dias após o avanço da autodemarcação, os povos Guarani e Kaiowá receberam uma ordem de despejo dos latifundiários e dos fazendeiros para se retirarem do local em um prazo de cinco dias. Xaky Jovito, indígena presente na retomada, conta que, apesar da ameaça para sair do local, não está com medo, por ter certeza que a comunidade irá lutar pela resistência. “Se isso for acontecer mesmo, a gente vai enfrentar, morrer e se sacrificar pelas nossas terras”. Ela manifesta a preocupação da comunidade de que os ataques dos ruralistas se intensifiquem após o prazo da retirada. “Houve 4 feridos aqui no dia dos ataques, se houver esse despejo, vai ter mais pessoas se ferindo”, completa Xaky. 

Os responsáveis pelos ataques ao povo Guarani-Kaiowá divulgaram informações falsas nas redes sociais, alegando que a comunidade não é indígena e veio do Paraguai. Essas acusações foram feitas por uma fonte anônima em um vídeo publicado na página do Instagram do deputado federal Marcos Pollon. “Os latifundiários falam que a gente é do povo paraguaio, que estamos se fazendo de indígenas, negativo, eu nasci e cresci aqui”, diz Daniela. De acordo com ela, para evitar futuras invasões e violências é necessária a demarcação do tekoha Lagoa Rica, processo em andamento por 20 anos.

Em nota publicada em 20 de julho, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) afirmaram estar monitorando de perto os povos Guarani e Kaiowá a partir de uma equipe responsável por avaliar a situação e dialogar com as comunidades envolvidas. Após disparos de armas de fogo que resultaram em um indígena baleado e outros machucados com balas de borracha, a Funai busca apoio do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP). 

A Fundação também recebeu relatos de incêndios de grande escala e de monitoramento da área pelos fazendeiros e latifundiários com drones e caminhonetes. A Funai ressaltou seu objetivo em garantir segurança para os povos originários e em encontrar uma resolução para a retomada com todos os grupos envolvidos. 

Com a retirada das Forças Nacionais do local, em 3 de agosto, os ataques se intensificaram e cinco indígenas foram levados para emergência depois de disparos por armas de fogo. Na tarde da última segunda-feira (05), após mais de três semanas de conflitos entre latifundiários e povos indígenas no MS, o Tribunal Regional Federal da 3° Região (TRF3) suspendeu a ordem reintegração de posse, responsável por ordenar o despejo das comunidades Guarani e Kaiowá na região de Douradina. A suspensão da ordem, porém, não garante a segurança dos indígenas na retomada. “É preciso avançar nas demarcações como nos garante a Constituição Federal”, destaca Mônica Cristina. 

Segundo dados da Funai, até o momento, apenas 424 terras indígenas foram oficialmente demarcadas, representando menos de 14% do território brasileiro. No Brasil, embora o processo demarcatório tenha um número máximo de dias estipulado para cada etapa, a realidade está distante do previsto em lei. Um exemplo disso é o caso dos Guarani-Kaiowá, que aguardam desde 2011 a aprovação da demarcação de seu território.

Etapas no processo de demarcação / Fonte: Instituto Socioambiental

Mesmo com a criação do MPI pelo presidente Lula em 2023 e a nomeação de lideranças indígenas em cargos importantes, como Joênia Wapichana na presidência da Funai, a lentidão nos processos demarcatórios dificultam o avanço na garantia direitos indígenas previstos na constituição. “É uma questão preocupante porque na luta pela terra, 70% dos que estão debaixo de uma lona são crianças e mulheres. Elas estão na linha de frente correndo todo tipo de violações e risco.”, destaca a professora Mônica Cristina.

Em 2023, foram registrados 309 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e outros conflitos relacionados à terra, conforme dados do CIMI. “O problema maior não é a legislação, pois a Constituição nos garante os direitos, mas como garantir e fazer valer esses direitos?”, questiona Mônica. Ela destaca que os interesses e a pressão da bancada ruralista, formada por parlamentares que são, em sua maioria, proprietários de terras e empresários rurais, possuem relação direta com o atraso nos processos de demarcação de terras indígenas. 

O relatório do CIMI mostra que houve um aumento crescente contra os povos originários entre os anos de 2019 e 2022. Durante esses quatro anos, foram registrados 795 indígenas mortos, 407 disputas por conflitos territoriais e cerca de 1133 casos de invasões possessórias, danos ao patrimônio e exploração ilegal de recursos naturais em terras indígenas. No Brasil, não ocorre punição para crimes contra as comunidades originárias, porque há uma conveniência do Estado, afirma Mônica. A professora apontou a organização “Invasão Zero” como um exemplo da impunibilidade desses criminosos, esse movimento é liderado por fazendeiros e proprietários de terra. O grupo é responsável por se organizar ilegalmente para ocupar áreas de trabalhadores de terras e de comunidades indígenas, com características semelhantes às milícias armadas. 

Desafios na demarcação de terras indígenas 

O Marco Temporal é uma tese jurídica criada com objetivo de restringir o direito de posse dos indígenas apenas às terras ocupadas ou disputadas antes de 5 de outubro de 1988, a data de publicação da Constituição vigente no Brasil. A proposta cria barreiras adicionais de demarcação de terras indígenas e aumenta os casos de violência contra essas comunidades, segundo Mônica Cristina. Para ela, o Marco Temporal, que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2007, pode intensificar os conflitos entre povos originários e grupos dedicados à mineração e ao agronegócio. 

Entre os principais defensores do Marco estão parlamentares que compõem a bancada ruralista, afirmando que o projeto é necessário para dar “segurança jurídica” aos fazendeiros. Nunes Marques, ministro do STF, declara que a soberania do Brasil estaria em risco sem a aprovação do Marco Temporal, além de prejudicar o mercado imobiliário. De acordo com a professora, a tese jurídica é uma “ameaça significativa aos direitos e à integridade territorial das comunidades indígenas”, não reconhecendo terras ocupadas e protegidas por esses povos após 1988. 

O STF considerou o Marco Temporal inconstitucional em setembro de 2023, por validar ameaças e violências ocorridas contra os indígenas antes da proclamação da Constituição. Porém, o Congresso Nacional restabeleceu a proposta com a criação da lei 14.701/2023, negando o pedido de veto feito pelo presidente Lula.  

Para a professora Mônica, a sociedade civil, as comunidades internacionais e os órgãos públicos são responsáveis por determinar o futuro dos povos indígenas na promoção de inclusão social e de visibilidade. Ela conta que as invasões de terras e os casos de violência vão aumentar ou persistir nos próximos anos, sendo as mudanças climáticas e o desmatamento fatores de riscos contra essas comunidades. “Os modos de vida e cosmovisões dos povos originários e seu respeito e conexão com a Mãe Terra, a Grande Criadora, são a alternativa para solucionarmos os desafios climáticos que estamos sofrendo”, conclui a professora.  

Pontos de acolhimentos de alimentos e mantimentos / Fonte: Instagram da Aty Guasu

Desde o início da invasão, os fazendeiros estabeleceram acampamentos nas terras dos Guarani-Kaiowá, impedindo o acesso à comida e água para esses povos. As comunidades indígenas estão instalando pontos de coleta de alimentos e de itens de higiene, como papéis higiênicos e absorventes, para os residentes de Mato Grosso do Sul. Qualquer quantia pode ser doada através do endereço Pix: ms.unidadepopular@gmail.com

Corrida pelo ESG estimula fraude entre as empresas

Corrida pelo ESG estimula fraude entre as empresas

Discursos de sustentabilidade socioambiental convive com denúncias da prática de greenwashing (lavagem verde) 

Por: Beatriz Araujo

A urgência do debate sobre mudanças climáticas e crises ambientais levou muitas empresas nos últimos anos a adotarem uma estratégia conhecida mundialmente pela sigla em inglês ESG (Meio Ambiente, Social e Governança). A ESG reúne um conjunto de princípios e ações focadas em promover boas práticas. Esforço para se apresentarem como instituições preocupadas com o desenvolvimento responsável, contudo, tem sido acompanhado de denúncias sobre discursos sustentáveis que não correspondem a ações efetivas de mudanças no modo de produção e circulação das empresas. Conhecido como greenwashing, ou seja, a ação de enganar investidores e consumidores, a prática pode ser considerada crime ambiental e ter consequências legais contra empresas, segundo especialistas.

O ESG surgiu em 2004, no relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) intitulado “Who Cares Wins” (“Ganha quem se importa”, em português). O documento foi criado para estabelecer diretrizes que buscam determinar se uma empresa é socialmente consciente, sustentável e possui uma gestão adequada. O professor Carlos Milani do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), explica que o ESG é uma maneira de avaliar o desempenho de sustentabilidade de um negócio, baseando-se em três pilares: Ambiental, Social e Governança. “Essa sigla é uma nova etiqueta para algo anterior, que é essa dinâmica das empresas voluntariamente afirmarem que respeitam os direitos climáticos, ambientais, sociais, e a transparência em suas práticas, gestão de fornecedores e modo de produção de seus produtos e serviços.”

ESG está relacionado às práticas ambientais, sociais e de governança / Foto: Freepik

O pilar Ambiental avalia quais impactos ambientais as organizações promovem, tanto positivamente quanto negativamente. O pilar compreende as ações da empresa voltadas para o meio ambiente, abrangendo comportamentos relacionados ao consumo de recursos naturais em sua cadeia de produção, emissões de gases poluentes e do efeito estufa, eficiência energética, gestão de resíduos, poluição da água, entre outros. O Ambiental considera também ações, projetos e políticas de promoção a preservação e melhoramento ambiental. 

No pilar Social, é avaliado o relacionamento de uma empresa com fatores sociais como a inclusão, a diversidade, relações de trabalho com seus fornecedores e clientes, respeito aos direitos humanos e às leis trabalhistas. Um exemplo são as  condições do local de trabalho que fornecem respeito pela saúde e segurança dos funcionários. O último pilar, de Governança, refere-se às esferas administrativas e de gestão da empresa como a política de remuneração dos cargos, transparência e ética da instituição.

O peso do ESG repercute nos negócios e na imagem das instituições. Os indicadores Ambiental, Social e Governança já são utilizados por empresas de investimento para ajudar a identificar corporações posicionadas para um forte desempenho a longo prazo. De acordo com a pesquisa “ESG Market Navigator”, conduzida pela Bloomberg Intelligence, 84% dos executivos entrevistados acreditam que os fatores ESG contribuem para uma estratégia corporativa mais sólida, melhoram a reputação da empresa e facilitam o acesso a capital e expressam interesse em investimentos sustentáveis. Além disso, à medida que a consciência ambiental e social cresce, os consumidores estão cada vez mais atentos às escolhas das marcas que irão consumir, preferindo produtos mais sustentáveis.

A certificação de ESG em empresas é realizada por certificadoras especializadas do próprio setor de mercado, baseando-se no princípio de que a maioria das práticas e soluções são adotadas voluntariamente, mas, para o professor Carlos Milani, é preciso atenção ao grau de autonomia e independência dos certificadores. “Existem inúmeras denúncias dentro do setor corporativo, sobretudo transnacional, de empresas e corporações que se dizem agentes de acordo com os critérios de ESG ou de responsabilidade socioambiental, mas é um agente que pratica violações de direitos humanos e uma série de práticas que são muito degradantes do ponto de vista socioambiental”, observa.

Algumas práticas não são tão sustentáveis quanto parecem

Além do problema da independência dos certificadores, muitas empresas passaram a praticar uma espécie de “lavagem verde” ou “maquiagem verde”, o greenwashing. Esse tipo de fraude corresponde em adotar uma série de estratégias para tentar construir uma imagem favorável de produtos e serviços que são vendidos como sustentáveis e socialmente responsáveis quando, na verdade, são fruto de um processo de práticas que não atende critérios de mitigação de impactos socioambientais.

“Lave o seu crime climático” / Foto: Istock

A lista dos “Sete Pecados do Greenwashing”, elaborada pela consultoria canadense TerraChoice em 2007, criou uma tipologia das principais práticas de greenwashing que ajuda a identificar melhor práticas problemáticas. Entre elas está a irrelevância. “Por exemplo, você fez um projeto socioambiental com uma comunidade no interior ou na costa do Rio de Janeiro para proteger uma comunidade de marisqueiras, que vivem de manguezal. Mas suas emissões de poluentes estão em uma escala estratosférica, então o que você faz em termos de prática de ESG torna-se irrelevante”, explica Milani. 

A imprecisão e o custo camuflado, como o caso da multinacional Walmart em 2015 onde toalhas e lençóis fabricados com rayon, material sintético foram comercializados como sendo feitos de bambu ecológico, são alguns dos outros fatores presentes na lista. “Existem práticas que correspondem a uma narrativa, a um discurso de ESG. Mas existem também muitas práticas que, infelizmente, dentro do sistema econômico que a gente está inserido não correspondem a esse discurso”, observa o professor.

Em alguns casos, o greenwashing pode ser considerado uma prática ilegal. De acordo com o Código de Defesa do Consumidor (CDC), publicidades enganosas que omitem ou passam informações falsas sobre um produto configuram uma infração. Quando as alegações afetam o meio ambiente, a empresa pode estar sujeita a sanções e multas caso configure descumprimento de leis previstas na legislação brasileira, como a Política Nacional de Resíduos Sólidos, que estabelece diretrizes para a redução, reutilização, reciclagem e tratamento correto desses resíduos no país.

A pesquisa “Mentira Verde” realizada pelo Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), além de fornecer dados sobre práticas de greenwashing no mercado brasileiro, apresenta informações úteis para os consumidores que desejam entender e identificar essas práticas no seu consumo pessoal. O guia alerta para o uso de termos como “ecológico”, “sustentável” ou “amigo do meio ambiente”. Termos amplos e vagos como esses não podem ser usados nas embalagens dos produtos de acordo com a Norma ABNT ISO 14021. Outro fator destacado são os selos presentes em embalagens que, muitas vezes, são criados pela própria empresa para passar uma imagem equivocada de certificação. O ideal é que o  consumidor pesquise sobre o símbolo para confirmar sua autenticidade. Dicas como essas mostram a necessidade da cautela diante dos produtos que se encontram no mercado.

Fonte: Ideal Verde

Moradores das favelas são mais vulneráveis a altas temperaturas

Moradores das favelas são mais vulneráveis a altas temperaturas

Formação de ilhas de calor nas comunidades é uma das causas apontadas por especialista

Por: Manoela Oliveira

Aglomerado de casas das favelas do Complexo do Alemão / Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
 
 
 

As favelas estão mais expostas a ondas de calor do que lugares considerados nobres, de acordo com um estudo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A pesquisa mostrou que os complexos da Maré, do Alemão e da Penha são as regiões mais quentes do Rio de Janeiro, sendo todas áreas localizadas na Zona Norte da cidade. No Rio, a menor temperatura em 2024 foi registrada no Alto da Boa Vista, com 15,5%, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET). As diferenças no tipo de ocupação das regiões da cidade podem explicar as diferenças de temperatura, segundo pesquisadores.

Para Luciana Figueiredo, professora do Departamento de Oceanografia Física e Meteorologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a ocorrência de temperaturas mais elevadas em bairros periféricos ocorre, muitas vezes, pela formação de ilhas de calor nessas regiões. Esse fenômeno acontece quando lugares muito urbanizados registram temperaturas mais altas que as áreas ao redor. Isso acontece devido à retirada de cobertura vegetal para construir asfaltos, material com grande absorção de calor. Um estudo global publicado na revista científica Nature Communications revelou que espaços arborizados são até 12 °C mais frios que localidades urbanas sem árvores.

James Miyamoto, professor de arquitetura e urbanismo da UFRJ, explica que existe uma grande aridez nas áreas onde estão localizadas as favelas, intensificando as ilhas de calor. “Quando chove, por exemplo, você tem problemas de alagamento, porque o solo é completamente impermeabilizado”. No Rio de Janeiro, uma em cada cinco casas está em áreas de alto risco de inundação, defende a Associação da Casa Fluminense. 

Distribuição dos cariocas afetados por riscos climáticos / Gráfico: Reprodução própria, com dados da Associação da Casa Fluminense




De acordo com Luciana, “quanto mais carentes são as regiões, menos vegetação a gente vai encontrar”. Um levantamento da Sociedade Brasileira de Arborização Urbana apontou que os bairros da Zona Norte e Oeste do Rio de Janeiro apresentam as menores coberturas vegetais. Cordovil, Santa Cruz e Bangu foram as áreas menos arborizadas da cidade, segundo o estudo.

Luciana ressalta que a precariedade das construções das favelas afeta a sensação climática dos moradores. “Às vezes a casa não tem janela nem portas, então acaba criando um desconforto térmico muito grande nessas pessoas”. A professora concorda com o conceito de “injustiça climática”, argumentando que, apesar de as crises ambientais serem uma realidade global, as pessoas de classes mais altas são menos afetadas pelas mudanças climáticas.

Segundo James, a maioria das moradias nas favelas não possuem telhas, material que reflete os raios solares. No lugar, são usadas lajes em ambientes de grande concentração populacional, contribuindo para o aumento das temperaturas. De acordo com o professor, a melhor forma de diminuir as ondas de calor é com a implementação de cobertura vegetal em pontos estratégicos da cidade. 

Ações da Secretaria Municipal do Meio Ambiente e do Clima

No Rio, a Prefeitura tem projeto para minimizar o impacto das altas temperaturas nas comunidades. O “Cada Favela, uma Floresta”, da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Clima (SMAC), tem o objetivo de promover o desenvolvimento sustentável no Rio, diminuindo as vulnerabilidades climáticas existentes nas áreas mais pobres nessas regiões. Segundo Alberto Santos, arquiteto e urbanista na Gerência de Projetos Especiais da SMAC, o programa visa ampliar as áreas drenantes, reduzir as ilhas de calor e aumentar o acesso às áreas verdes. No Parque Ecológico da Maré, o “Cada Favela, uma Floresta” trabalha no plantio de mudas e construção de hortas comunitárias. O projeto está em fase de licitação no Complexo do Alemão e no Morro do Juramento.

“Cada Favela, uma Floresta” tem parceria com outros três programas da Secretaria, o primeiro é o “Hortas Cariocas”. Ele é responsável por gerar alimentos de qualidade dentro das comunidades e incentivar os moradores da favela a entrarem em contato com os plantios, de acordo com Alberto. O segundo projeto é o “Cozinha Sustentável”, que ensina a população a preparar esses alimentos, além de oferecer comida à comunidade. O terceiro é o “Guardiões dos Rios”, que difunde nas favelas a conscientização ambiental por meio de eventos sobre sustentabilidade.

Tainá de Paula fala sobre sustentabilidade em palestra na Uerj

Tainá de Paula fala sobre sustentabilidade em palestra na Uerj

A secretária do Meio Ambiente e Clima discute a crise climática no Rio de Janeiro

Por: Manoela Oliveira e Samira Santos

 
 
Tainá de Paula durante a palestra / Reprodução: Manoela Oliveira

Na última quinta-feira, dia 21 de março, o evento “Ágora do IFHT, Série: Sustentabilidade no Território” reuniu figuras importantes da área da saúde e do Instituto Multidisciplinar de Formação Humana com Tecnologias da Uerj (IFHT). A palestra foi ministrada por Tainá de Paula, Secretária Municipal de Meio Ambiente e Clima do Rio de Janeiro, que compartilhou sua experiência sobre o tema “Crise climática, políticas públicas e sustentabilidade no território”. Além disso, para mediar o debate tivemos a presença do professor Carlos Alberto de Oliveira, diretor do IFHT. A mesa também contou com a participação de Bruno Neves, coordenador do Programa de Extensão, Desenvolvimento e Educação, Theotonio dos Santos (ProDEd-TS), e Gislaine Matheus, superintendente de vigilância em saúde.

A palestra foi transmitida ao vivo pelo canal do YouTube do Instituto, e abordou questões importantes acerca da preservação do meio ambiente e o desenvolvimento sustentável, refletindo sobre o papel das políticas públicas na mitigação dos impactos da crise climática. O evento teve início às 16h30 e terminou às 18h, proporcionando um espaço para discussões relevantes sobre questões ambientais e a urgência na implementação de políticas públicas efetivas.

Desigualdade Climática: Negacionismo e suas Consequências

“No Rio de Janeiro, a desigualdade climática não é mais uma realidade que pode ser negada”. Essa foi a afirmação de Tainá de Paula, feita durante a discussão sobre as políticas públicas que precisam priorizar os mais pobres. Para a secretária, o negacionismo adotado por alguns prefeitos do estado pode resultar em perdas significativas para a população de baixa renda. “Sem os devidos alertas de emergência sobre as chuvas, essas pessoas correm o risco de permanecer em suas casas, mesmo diante de situações perigosas. O problema se agrava quando a responsabilidade pelos alagamentos é injustamente atribuída aos mais pobres, como se eles fossem os principais culpados”, disse Tainá.

Segundo ela, a educação ambiental e a gestão pública são fundamentais para lidar com os desafios causados pelas chuvas. Tainá afirmou que o processo de macrodrenagem, microdrenagem e limpeza urbana não é responsabilidade apenas do indivíduo, mas sim de toda a comunidade e das autoridades governamentais. Além disso, segundo a secretária, é preciso reconhecer que as mudanças climáticas não são causadas apenas localmente, mas sim por ações globais, como o desmatamento e a poluição industrial.

A pesquisa da organização não governamental Oxfam de 2015 revelou que os 50% mais pobres da população são responsáveis por uma menor emissão de gases de efeito estufa, enquanto os 10% mais ricos produzem uma quantidade significativamente maior. Portanto, a partir das considerações de Tainá de Paula, não é justo comparar a responsabilidade de um indivíduo que não pratica a coleta seletiva de lixo com a responsabilidade de grandes empresas multinacionais.

O Brasil é um dos protagonistas no cenário mundial das mudanças climáticas, sendo um dos países que mais emite gases de efeito estufa. Segundo o Sistema de Monitoramento das Mudanças Climáticas (PCRJ), em 2023, o país figurava entre os maiores emissores do mundo. No território brasileiro, as grandes cidades têm um papel crucial nesse panorama. Entre as cidades brasileiras, das dez maiores emissoras de gases de efeito estufa, duas estão localizadas no Sudeste, Rio de Janeiro e São Paulo. Além disso, o Oeste brasileiro abriga as oito maiores cidades emissoras desses gases.

De acordo com a secretária, o impacto das mudanças climáticas não se limita apenas ao meio ambiente, mas também afeta diretamente a vida das pessoas. “O preço da cesta básica está ligado às crises climáticas que enfrentamos. O calor extremo, por exemplo, pode resultar na perda de colheitas inteiras de nossos principais grãos, como o arroz, que não sobrevive em condições de calor extremo. Por isso, é fundamental compreender que eventos climáticos como o El Niño não são eventos isolados, mas sim parte de um contexto maior de mudanças climáticas globais”. 

Tainá de Paula enfatizou como as diferentes classes econômicas são afetadas pelas mudanças climáticas, devido às vulnerabilidades locais existentes no Rio de Janeiro. De acordo com a secretária: “Quanto mais você é vulnerável na cidade, mais suscetível você está às mudanças climáticas”, disse Tainá. Ela reafirmou que pessoas enquadradas na escala de extrema pobreza estão mais expostas a problemas como o deslizamento de terra, o calor extremo e as enchentes. O Rio de Janeiro é o terceiro estado mais desigual do Brasil, perdendo apenas para Roraima e Paraíba, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2023.  

Tainá disse que a secretaria de Meio Ambiente e Clima, com a colaboração da secretaria de Saúde, possuía o interesse de instituir estratégias para melhorar as condições de vulnerabilidade social e de estabelecer critérios para mapear os riscos graves. Por isso, foi criado o Índice de Vulnerabilidade Ambiental da Cidade do Rio de Janeiro, responsável por definir as áreas prioritárias para a inserção de políticas públicas. Segundo o levantamento, o complexo do Alemão, Bangu, Ramos, Complexo da Maré e Pavuna foram as localidades mais impactadas pelos perigos climáticos.

Projetos de sustentabilidade

A palestra apresentou 12 projetos governamentais de sustentabilidade incentivados por Tainá de Paula e Eduardo Paes, atual prefeito do Rio de Janeiro. Os principais programas foram o “Cada Favela, Uma Floresta” e o “Jovens Negociadores pelo Clima”. O primeiro possui o objetivo de reflorestar cinco comunidades do Rio de Janeiro para diminuir a sensação térmica desses locais. Também foi destacado por Tainá a necessidade de abordar os estigmas das favelas na universidade. Porque, segundo ela: “Até a Uerj foi construída em cima de uma remoção de favela”.

O projeto “Jovens Negociadores pelo Clima” capacita jovens cariocas para representar as urgências da juventude na Agenda do Clima do Brasil e da Organização das Nações Unidas (ONU). De acordo com as informações fornecidas por Tainá, dos 400 inscritos, apenas 50 pessoas foram escolhidas e participaram de uma capacitação de 36 horas.

Outros programas da secretaria de Meio Ambiente e Clima / Reprodução: YouTube do IFHT
 
 

A cobertura da palestra pode ser acessada pelo YouTube do IFHT. 

Os prejuízos da inteligência artificial no meio ambiente

Os prejuízos da inteligência artificial no meio ambiente

 Pegada de carbono associada aos sistemas de inteligência artificial têm o potencial de intensificar a crise climática.

Por: Beatriz Araujo

A inteligência artificial (IA) tem se destacado nos últimos anos como setor em pleno desenvolvimento, sendo utilizada em áreas como saúde, educação e até mesmo em tarefas do cotidiano. No entanto, o uso intensivo dessa tecnologia tem gerado preocupações. Um artigo publicado pela revista Nature Climate Change, em junho de 2022, revelou que a quantidade de energia elétrica necessária para o desenvolvimento de modelos IA é responsável por um aumento nas emissões de carbono do setor tecnológico, o que contribui para o aquecimento global. 

Foto: (Reprodução/Freepik)

Para que aprendam a realizar suas tarefas, os modelos IA precisam passar por um treinamento, que consiste no processamento de grandes quantidades de dados. Algoritmos como o do ChatGPT, desenvolvido pela OpenAI, são abastecidos com bancos de dados de textos da internet, para que analisem e saibam identificar e compreender a linguagem utilizada pelas pessoas. 

Data centers das big techs são responsáveis por até 4% das emissões de CO2

Nas big techs, como a Microsoft e a Alphabet (Google), o processamento de dados acontece em data centers, instalações físicas responsáveis por hospedar servidores, dados e os equipamentos necessários para o funcionamento de serviços da área de TI. Dados da Agência Internacional de Energia (AIE) indicam que os data centers consomem cerca de 200 terawatts-hora (TWh) de eletricidade. Isso equivale a aproximadamente 1% da demanda global de eletricidade. Com todo esse consumo energético, algumas estimativas indicam que a infraestrutura conjunta dessas centrais de computadores e das redes de transferência de dados é responsável por 2% a 4% das emissões globais de CO2 em todo o mundo, número próximo ao setor de aviação comercial. 

De acordo com o Conselho Mundial de Eletrônica, 45% das emissões de gases de efeito estufa da indústria de tecnologia provêm do gasto intensivo de energia dos data centers.

Distribuições das emissões de gases do efeito estufa no setor de tecnologia.
Fonte: Global Electronics Council, 2021

A expectativa é de que essas emissões aumentem nos próximos anos. Isso porque a demanda por IA e pelo treinamento de algoritmos tem crescido exponencialmente, principalmente com o sucesso e popularização de ferramentas como o ChatGPT e Dall-E.

Rizzieri Pedruzzi, professor adjunto do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental (DESMA) da UERJ, explica que o uso de GPUs, placas gráficas com poder de processamento maior, apesar de promover mais rapidez e eficiência na fase de treinamento dos sistemas IA, demandam um consumo de energia muito maior do que outros processadores. O professor destaca também o custo energético relacionado à operação contínua de supercomputadores em grandes corporações. “Geralmente, esses computadores, uma vez ligados, não desligam, e quando começam a fazer o treinamento de redes de inteligência artificial, o consumo de energia aumenta ainda mais”.

Um estudo feito pela Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos, revelou que o treinamento de um modelo IA comum de grande porte pode emitir até 284 toneladas de CO2, o equivalente ao dobro de emissões de um carro durante toda sua vida útil, incluindo o processo de fabricação. Em modelos mais complexos, que trabalham com a aprendizagem profunda (deep learning), como algoritmos que fazem a curadoria de conteúdo em redes sociais, o poder de processamento necessário é maior e o consumo de energia também. Ou seja, conforme os modelos evoluem e são aperfeiçoados para atingirem maior precisão, a pegada de carbono tende a crescer. 

A fase de treinamento, porém, é só o começo. De acordo com Anne Mollen, pesquisadora da ONG alemã AlgorithmWatch, 90% das despesas com a execução de inteligência artificial ocorrem na fase seguinte, quando os usuários consultam o sistema, o que pode acontecer milhões de vezes por dia. Uma simples pergunta ao ChatGPT, pode gerar um gasto energético 10 vezes maior do que o necessário na fase de treino, o que significa 500 toneladas de CO2, uma emissão comparável a dirigir um carro a gasolina por 1 milhão de quilômetros de distância.

Como reduzir as emissões de carbono?

Uma das principais preocupações sobre o assunto é que a maior parte da energia consumida pela IA é proveniente de fontes não renováveis. “A mudança da matriz energética é essencial para diminuir as emissões de carbono”, enfatiza o professor Rizzieri Pedruzzi. “Se a matriz energética for mais limpa, de energia renovável, temos uma pegada de carbono menor. Em uma região que queima combustível fóssil para gerar energia teremos uma pegada de carbono maior, emitindo mais gás carbônico na atmosfera”.

Ainda que as empresas mudem a matriz energética e utilizem fontes renováveis, Pedruzzi ressalta que, em algumas atividades, a emissão de carbono é inevitável. Como na cadeia de suprimentos, associadas à extração, produção e transporte de matérias-primas que compõem equipamentos presentes nos centros de desenvolvimento de redes de inteligência artificial. Ele explica que, as emissões de gases poluentes relacionados à exploração de recursos, e a cadeia de produção de uma placa gráfica, como as GPUs utilizadas no treinamento de inteligência artificial, é consideravelmente maior do que as oriundas do consumo de energia. 

A partir disso, a alternativa seria a compensação. Muitas empresas e gestões governamentais vêm adotando a política net zero. De forma geral, significa que todo lançamento de gases poluentes na atmosfera deve ser compensado pela redução de uma quantidade equivalente de CO2. Entre algumas estratégias adotadas estão a captura de dióxido de carbono emitido por instalações industriais e sua posterior armazenagem em locais específicos para evitar a liberação na atmosfera, o  reflorestamento e a regulamentação e políticas públicas que incentivam práticas sustentáveis e penalizam emissões excessivas.  Grandes empresas de tecnologia, como a Apple, Amazon, Google e Meta já anunciaram planos para se tornarem neutras em carbono em suas operações até 2030. 

Para tornar a IA mais ecológica, uma equipe de pesquisadores da Universidade de Stanford, Facebook AI Research e MCGill University desenvolveu um rastreador, que mede quanta eletricidade um projeto de aprendizado de máquina usará e quanto isso significa em emissões de carbono. Os pesquisadores implementaram no rastreador uma ferramenta que gera um site para comparar a eficiência energética de diferentes modelos. Assim, os desenvolvedores de IA podem medir o consumo e emissão de seus experimentos e escolher a opção mais eficiente e de menor impacto ambiental. O rastreador foi usado em 2020 no workshop SustaiNLP na conferência sobre Métodos Empíricos em Processamento de Linguagem Natural e está disponível online para pesquisadores.