O mural de Lélia Gonzalez transforma os prédios cinzas da Uerj

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O mural de Lélia Gonzalez transforma os prédios cinzas da Uerj

Por Samira Santos

A Uerj carrega, em seus corredores e salas de aula, a história de diversas personalidades que transformaram o pensamento acadêmico e social do Brasil. Entre elas, destaca-se Lélia Gonzalez, uma intelectual, professora e ativista negra, cuja trajetória inspirou gerações e segue ecoando até os dias atuais. Em homenagem a essa figura emblemática, o evento “Ânima 2025” trouxe uma nova forma de resistência para dentro da Universidade: um mural vibrante e simbólico que, através da arte, ressignifica os espaços da instituição.

Mural da Lelia e a artista J.Lo (Foto: Equipe Coart)
Mural da Lelia e a artista J.Lo (Foto: Equipe Coart)

O legado de Lélia

 Nascida em 1935, em Belo Horizonte, Lélia Gonzalez conquistou seu espaço na academia em uma época em que a presença de mulheres negras no ensino superior era praticamente inexistente. Graduou-se em História e Filosofia na então Universidade do Estado da Guanabara (UEG), atual Uerj, e prosseguiu seus estudos na PUC-Rio, onde fez mestrado em Comunicação e doutorado em Antropologia Política. Sua produção intelectual foi marcada pela interseção entre gênero e raça, culminando no conceito de “Amefricanidade”, que destaca as experiências negras na América Latina como um elo essencial para compreender as estruturas raciais do continente.

A professora Leda Costa, especialista no pensamento de Lélia Gonzalez, destaca a importância de sua obra: “O pensamento de Lélia é um pensamento riquíssimo para entender o racismo no Brasil, para entender o sexismo no Brasil. E é um pensamento muito inovador também, já que Lélia recorre à psicanálise e tem um papel muito atuante. Ela foi uma pensadora militante da causa do feminismo negro, uma militante contra o racismo, alguém que conseguiu conciliar uma vida acadêmica com uma intensa atuação política”.

Sobre o conceito de “Amefricanidade”, a professora Leda acrescenta: “Lélia desenvolveu muitos debates no Colégio Freudiano e teve contato com psicanalistas como Carlos Magno, que a influenciou bastante. Além disso, ela estava muito antenada com pensadores como Frantz Fanon e Paul Gilroy, que já apontavam para a necessidade de repensar a relação entre a África e a América. Daí surge a ideia de “Amefricanidade”, que propõe uma matriz africana essencial para compreender as dinâmicas do continente americano, diferente da concepção de afro-americano centrada nos Estados Unidos”.

 
Livro da Lélia sobre feminismo negro (Foto: Reprodução)
Livro da Lélia sobre feminismo negro (Foto: Reprodução)

 

Seu ativismo se expandiu para o Movimento Negro Unificado (MNU), no qual desempenhou papel fundamental na luta contra o racismo no Brasil. Inspirados por esse legado, a Coart se reuniu para transformar as paredes cinzentas da Universidade em um manifesto visual. O mural criado no evento “Ânima 2025” transcende a estética e se torna um símbolo de resiliência e empoderamento.

A iniciativa para a criação do mural partiu da artista visual J.Lo Borges, que grafitou um retrato de Lélia Gonzalez sorrindo, com sua característica faixa no cabelo. O mural foi composto por cores quentes para transmitir aconchego, criando um espaço de memória dentro da Uerj. J.Lo Borges, que atualmente cursa mestrado em relações étnico-raciais, ressaltou a importância do mural não apenas como uma homenagem, mas como um lembrete constante do pensamento crítico de Lélia Gonzalez.

A professora Leda Costa também reforça essa necessidade: “Lélia não era uma mulher somente de gabinete, ela mantinha contato constante com a realidade das mulheres negras marginalizadas no Brasil. Ela questionava a concepção tradicional do feminismo, que priorizava uma visão ocidental e branca da mulher, e reivindicava a centralidade da mulher negra nesse debate. Isso precisa ser estudado e discutido amplamente dentro da universidade”.

A intervenção artística não passou despercebida. Alunos, professores e funcionários da Uerj rapidamente transformaram o mural em ponto de encontro e reflexão. Para muitos estudantes negros, a imagem de Lélia representa a possibilidade de pertencimento em um espaço historicamente excludente. A arte, que se impõe sobre a paisagem cinzenta da Universidade, também provoca debates sobre a permanência de intelectuais negros nos currículos acadêmicos.

A criação do mural marca um momento simbólico na Uerj, mas também levanta questões sobre o compromisso da universidade em valorizar efetivamente o legado de Lélia Gonzalez. Professores e estudantes seguem mobilizados para garantir que seu pensamento não seja apenas homenageado, mas incorporado ao debate acadêmico de forma estruturada.

Lélia Gonzalez enxergava a educação como ferramenta de emancipação e transformação social. Seu legado é um convite para que a Universidade se torne, de fato, um espaço plural, onde diferentes vozes possam ser ouvidas e valorizadas. E, agora, esse chamado está gravado, em cores vivas, nos muros da Uerj, resistindo ao tempo e inspirando novas gerações.

O mural de Lélia Gonzalez transforma os prédios cinzas da Uerj

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