Viver é perigoso: a psicologia e a palavra em Guimarães Rosa
Lafepe é onde pensamento encontra a dor e a palavra cura
Por Samira Santos
No coração do Instituto de Psicologia da Uerj, no campus Maracanã, um grupo de pesquisadores, estudantes e professores se reúne semanalmente com um objetivo que transcende a técnica: compreender o ser humano em sua profundidade. Trata-se do Laboratório de Fenomenologia e Estudos em Psicologia Existencial (Lafepe), coordenado pela professora e pesquisadora Ana Maria Feijoo. Vinculado ao programa de extensão Uerj Pela Vida, o Lafepe tem se consolidado como um espaço de referência nacional no estudo da fenomenologia e das filosofias da existência, com uma atuação que vai do campo teórico ao atendimento clínico especializado.
Formado por integrantes da graduação ao pós-doutorado, o laboratório é mais do que um ambiente acadêmico: é um território de escuta, reflexão e cuidado. Por meio do Núcleo de Atendimento Clínico (NAC), o Lafepe oferece psicoterapia com foco especial em pessoas em risco de suicídio e enlutadas, ampliando suas ações especialmente durante a pandemia de Covid-19, quando criou também um núcleo de apoio voltado para enlutados por perdas associadas à doença.
Além da prática clínica, o Lafepe promove grupos de estudo, discussões de casos, supervisões e eventos interdisciplinares que conectam psicologia, filosofia e arte. Um dos exemplos dessa atuação foi o evento realizado em abril, “Viver é muito perigoso: lições de Guimarães Rosa para um modo de pensar não colonizado”, que reuniu mais de 200 pessoas para refletir sobre o impacto da literatura no pensamento clínico e existencial.

Segundo a professora Ana Maria Feijoo, o laboratório busca, através da fenomenologia, compreender o sofrimento psíquico sem reduzi-lo a diagnósticos simplistas. Em suas palavras: “A fenomenologia nos ensina a escutar antes de interpretar. É nesse espaço de abertura que encontramos a singularidade do outro”.
Essa escuta também atravessa a literatura. Feijoo, que há anos estuda autores como Clarice Lispector, Lima Barreto e Manoel de Barros, atualmente se dedica à obra de Guimarães Rosa, especialmente ao romance Grande Sertão: Veredas. Em sua leitura, Riobaldo, protagonista do livro, traz à tona questões existenciais profundas — como o conflito interno entre o bem e o mal — que ressoam diretamente com os dilemas vividos na clínica. “A questão do ‘diabo existe ou não existe?’ que atravessa toda a narrativa de Riobaldo é, para mim, uma pergunta fundamental da psicologia clínica. Trata-se de uma busca por sentido, por compreensão da própria experiência, que culmina em uma resolução epifânica: o diabo não existe, o que existe é o homem humano”, afirma Feijoo.
Essa intersecção entre literatura e psicologia existencial é a marca registrada do Lafepe. Para a professora, os autores brasileiros oferecem uma chave de leitura do sofrimento humano que foge às classificações rígidas da psicologia tradicional, e por isso são fundamentais na construção de um pensamento não colonizado — ou seja, enraizado na realidade e na cultura brasileira.

O evento com o ator Gilson de Barros, que interpreta Riobaldo em uma trilogia teatral baseada no romance, exemplificou esse esforço. Na ocasião, Gilson trouxe trechos da peça à Uerj e participou de uma conversa com o público mediada por Feijoo, promovendo um encontro sensível entre arte e psicologia. Para a professora, iniciativas assim abrem espaço para uma formação clínica mais crítica e sensível à complexidade do ser humano.
O evento, ocorrido em abril, representa apenas uma das muitas ações realizadas pelo Lafepe. A rotina do laboratório segue intensa, com pesquisas em andamento, atendimentos à comunidade, supervisões clínicas e encontros interdisciplinares. O grupo também compartilha conteúdos e reflexões em seus canais virtuais, fortalecendo sua atuação como um centro de produção e disseminação de conhecimento sobre psicologia fenomenológica e existencial.