Bate papo com o ator Gilson Barros ( Foto: Lafepe)

Viver é perigoso: a psicologia e a palavra em Guimarães Rosa

Viver é perigoso: a psicologia e a palavra em Guimarães Rosa

Lafepe é onde pensamento encontra a dor e a palavra cura

Por Samira Santos

No coração do Instituto de Psicologia da Uerj, no campus Maracanã, um grupo de pesquisadores, estudantes e professores se reúne semanalmente com um objetivo que transcende a técnica: compreender o ser humano em sua profundidade. Trata-se do Laboratório de Fenomenologia e Estudos em Psicologia Existencial (Lafepe), coordenado pela professora e pesquisadora Ana Maria Feijoo. Vinculado ao programa de extensão Uerj Pela Vida, o Lafepe tem se consolidado como um espaço de referência nacional no estudo da fenomenologia e das filosofias da existência, com uma atuação que vai do campo teórico ao atendimento clínico especializado.

Formado por integrantes da graduação ao pós-doutorado, o laboratório é mais do que um ambiente acadêmico: é um território de escuta, reflexão e cuidado. Por meio do Núcleo de Atendimento Clínico (NAC), o Lafepe oferece psicoterapia com foco especial em pessoas em risco de suicídio e enlutadas, ampliando suas ações especialmente durante a pandemia de Covid-19, quando criou também um núcleo de apoio voltado para enlutados por perdas associadas à doença.

Além da prática clínica, o Lafepe promove grupos de estudo, discussões de casos, supervisões e eventos interdisciplinares que conectam psicologia, filosofia e arte. Um dos exemplos dessa atuação foi o evento realizado em abril, “Viver é muito perigoso: lições de Guimarães Rosa para um modo de pensar não colonizado”, que reuniu mais de 200 pessoas para refletir sobre o impacto da literatura no pensamento clínico e existencial.

Dia do evento com auditório lotado (Foto: Lafepe)
Dia do evento com auditório lotado (Foto: Lafepe)

Segundo a professora Ana Maria Feijoo, o laboratório busca, através da fenomenologia, compreender o sofrimento psíquico sem reduzi-lo a diagnósticos simplistas. Em suas palavras: “A fenomenologia nos ensina a escutar antes de interpretar. É nesse espaço de abertura que encontramos a singularidade do outro”.

Essa escuta também atravessa a literatura. Feijoo, que há anos estuda autores como Clarice Lispector, Lima Barreto e Manoel de Barros, atualmente se dedica à obra de Guimarães Rosa, especialmente ao romance Grande Sertão: Veredas. Em sua leitura, Riobaldo, protagonista do livro, traz à tona questões existenciais profundas — como o conflito interno entre o bem e o mal — que ressoam diretamente com os dilemas vividos na clínica. “A questão do ‘diabo existe ou não existe?’ que atravessa toda a narrativa de Riobaldo é, para mim, uma pergunta fundamental da psicologia clínica. Trata-se de uma busca por sentido, por compreensão da própria experiência, que culmina em uma resolução epifânica: o diabo não existe, o que existe é o homem humano”, afirma Feijoo.

Essa intersecção entre literatura e psicologia existencial é a marca registrada do Lafepe. Para a professora, os autores brasileiros oferecem uma chave de leitura do sofrimento humano que foge às classificações rígidas da psicologia tradicional, e por isso são fundamentais na construção de um pensamento não colonizado — ou seja, enraizado na realidade e na cultura brasileira.

Bate papo com o ator Gilson Barros ( Foto: Lafepe)
Bate papo com o ator Gilson Barros ( Foto: Lafepe)

O evento com o ator Gilson de Barros, que interpreta Riobaldo em uma trilogia teatral baseada no romance, exemplificou esse esforço. Na ocasião, Gilson trouxe trechos da peça à Uerj e participou de uma conversa com o público mediada por Feijoo, promovendo um encontro sensível entre arte e psicologia. Para a professora, iniciativas assim abrem espaço para uma formação clínica mais crítica e sensível à complexidade do ser humano.

O evento, ocorrido em abril, representa apenas uma das muitas ações realizadas pelo Lafepe. A rotina do laboratório segue intensa, com pesquisas em andamento, atendimentos à comunidade, supervisões clínicas e encontros interdisciplinares. O grupo também compartilha conteúdos e reflexões em seus canais virtuais, fortalecendo sua atuação como um centro de produção e disseminação de conhecimento sobre psicologia fenomenológica e existencial.

Oficina de voguing na Uerj traz visibilidade para a cena

Oficina de voguing na Uerj traz visibilidade para a cena ballroom

Demonstrações e ensinamentos acerca do vogue reuniram jovens no décimo andar da Universidade
para aprenderem mais sobre a cultura ballroom

Por: Hyndra Lopes 

Sensei Theuse Luz D’Pavuna na oficina de Voguing no hall do 10º andar do bloco F, Campus Maracanã 

A décima nona edição da Mostra de Artes e Carpintaria de Comunicação Social da Uerj (MACACOS) contou com a participação da Sensei Theuse Luz D’Pavuna, pesquisadora e fundadora da “Brazilian Kiki House of Bushido”, para ministrar a oficina de voguing. Pavuna criou uma experiência imersiva no vogue, ensinando e explicando a simbologia dos elementos da performance. Além disso, a artista concedeu uma entrevista ao Aconteceh, na qual comenta sobre o acolhimento de pessoas marginalizadas pela comunidade ballroom, o papel do vogue no empoderamento destas e a importância de se discutir sobre essa subcultura na universidade.

A cultura Ballroom, nos moldes conhecidos atualmente, surge no Harlem (bairro do subúrbio de Nova Iorque) durante a década de 1970, quando Crystal Labeija, drag queen e mulher trans negra, se revolta com o racismo nos desfiles e concursos de beleza voltados à comunidade. Ela se junta com Lottie Labeija, drag queen também negra, para fundar a primeira House (“House of Labeija”) e dar um baile exclusivo para as queens negras e latinas, consolidando a cena Ballroom como movimento de luta e resistência negro, periférico e LGBTQIAPN+. Já no Brasil, ela surge oficialmente apenas em 2015, quando é datado o primeiro baile em Brasília.

Oficina de Voguing no 10º andar do Bloco F, Campus Maracanã 

As Houses, pilares da cultura Ballroom, surgiram como um coletivo que se assemelha aconcepção familiar, reproduzindo as suas hierarquias, e foi continuado na cena brasileira, com“papis”, “mamas”, “filhos” e “baba” (fazendo referência ao orixá do candomblé). Este é umespaço de acolhimento para pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ que são expulsas de casa pelas suas famílias, como diz Pavuna: “Infelizmente ainda sofremos das mesmas máculas queas pessoas lá atrás sofriam, porque nem todo mundo é aceito pelos seus pais ou progenitores. Meu pai e minha mãe são pastores, então eles têm uma relação meio densa comigo. Hoje emdia eles compreendem mais e entendem que eu tenho uma família fora da minha família”.

Além das Houses, outro símbolo da cultura Ballroom é o vogue – categoria de dança inspirada nas poses de modelos das capas de revista – representando a expressividade e liberdade de corpos LGBTQIAPN+. O vogue é dividido em 5 elementos – o catwalk, o duckwalk, a hands performance, o floor performance e os spins and dips – e, a partir deles, uma história é contada, com a criação do movimento dos cabelos, seios, unhas etc. A Sensei Pavuna salienta a importância dessa performance para o empoderamento da comunidade: “O vogue, especificamente, fala sobre a autoestima, porque é sobre poses, é sobre se imaginar numa revista de moda. Então é muito interessante pensar o quanto você consegue se imaginar como uma pessoa potente, bonita, interessante… É muito louco, porque várias pessoas não se imaginam nesse lugar de “eu posso ser uma pessoa sensual”, “eu posso ser uma pessoa bonita” ou “eu posso ser uma artista” e na Ballroom elas se descobrem enquanto potência”.

Apesar de ter maior visibilidade atualmente, a Ballroom ainda é uma cultura marginalizada e pouco estudada. Pavuna explica que a cena chegou no Brasil por uma veia acadêmica, mas não academicista, pois foi por meio de estudantes universitários, na busca por reproduzir aqui o que viam do vogue e do lugar de comunidade do movimento, e não por intelectuais. A discussão sobre o assunto no ambiente universitário e ações para tornar a cena Ballroom ativamente presente nesses espaços mostram-se de suma importância, pois criam possibilidades de retirar essa cultura e a sua comunidade das margens da sociedade. “Se lá atrás a gente via as pessoas dessas categorias (negras e LGBTQIAPN+) pensando em se tornar executivas e estudantes de universidades é essa a possibilidade de pensar: “eu posso me imaginar nesse lugar, com esse poderio” (…) Então acessar isso (a universidade) e usar o nosso conhecimento (sobre a cultura ballroom), que não é assimilado totalmente nesses espaços, é muito importante”, declara Pavuna.

A Sansei também aponta para a luta da comunidade em tornar a cultura Ballroom Patrimônio Cultural Imaterial no Brasil – em janeiro deste ano, a deputada Erika Hilton (PSOL) apresentou este projeto de lei à Câmara (PL n°183/2025) – e para a necessidade de pensar políticas públicas através da cena, que, historicamente, contribuiu para salvar a vida desses jovens marginalizados. “Eu acredito que não estaria viva até aqui se não fosse por essa comunidade. Então é sobre como a gente consegue construir realidades e, graças a elas, outras possibilidades de existência. Eu tenho muito orgulho de ver o que a juventude negra, LGBT, periférica, originária e corpos travestis generis consegue construir”.

A nova lei e o debate sobre celulares nas escolas 

A nova lei e o debate sobre celulares nas escolas

Educadora avalia os prós e os contras

Fotográfo: Marcello Casal Jr.

Imagem: arquivo Agência Brasil

 

A Lei 15.100/2025, que proíbe o uso de aparelhos celulares nas escolas da rede pública e privada, está em vigor desde o retorno às aulas, ocorrido em fevereiro. A legislação restringe o uso de celulares nas salas de aula e durante o recreio, com objetivo de reduzir os impactos negativos causados pelo uso excessivo das telas. 

 

A lei foi implementada com a intenção de evitar distrações em sala de aula, incentivar a concentração e proporcionar mais interatividade entre os alunos. De acordo com pesquisa realizada pela TIC Kids Online Brasil 2024, 93% das crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos são usuários de internet no país e 81% possuem o próprio celular. 

 

Esse estudo tem a intenção de analisar a presença de crianças e jovens no ambiente virtual. Os números mostram que as gerações estão cada vez mais conectadas: 76% dos usuários de internet entre 9 e 17 anos utilizam redes sociais. 

 

A professora do Departamento de Estudos em Infância e Cultura da Uerj, Helenice Cassino Ferreira, afirma que a discussão sobre o uso de celulares em sala de aula é complexa e que não se deve olhar para apenas um partido. De acordo com ela, não dá para separar as crianças do mundo digital. A professora explica: “Podemos entender que há riscos, como a dispersão nas escolas [pelo uso excessivo de celulares], mas também temos um outro lado, como o do direito das crianças, inclusive o direito à mídia.” 

 

Ela observa que a tecnologia traz possibilidades interativas muito interessantes. “Eu acho que os aparelhos celulares podem ajudar, sim”, opina ela, “para pesquisas, por exemplo”. “As crianças e jovens têm direito de usar os meios digitais para criar, se conectar com o mundo, procurar informações”, afirma a professora. 

 

Os meios digitais pertencem à educação também, por isso a discussão sobre o bom uso dos aparelhos celulares deve ser abordada nas escolas. Sobre isso, a professora explica: “A escola precisa conscientizar sobre o uso interessante da tecnologia. Para procurar notícias, para escapar das fake news, para escapar de abusos. Essa discussão tem que ser falada nas escolas.” 

 

É preciso que o aluno seja direcionado a usar a tecnologia de maneira benéfica para seu aprendizado. A cartilha “Crianças, adolescentes e telas: guia sobre usos de dispositivos digitais”, desenvolvido pelo Governo Federal em 2025, pontua: “O uso não pedagógico de dispositivos digitais no ambiente escolar, em qualquer etapa de ensino, pode trazer prejuízos para o processo de aprendizagem e desenvolvimento de crianças e adolescentes”. 

 

A respeito do assunto, a professora Helenice enfatiza: “Uma mediação ativa é importantíssima”. O corpo escolar e os familiares devem, portanto, acompanhar as crianças. De acordo com a educadora, averiguar o aproveitamento do material e construir, em conjunto, maneiras de reconhecer um material de qualidade são possibilidades de conduzir a criança e o adolescente ao uso educativo dos meios digitais. 

 

A lei possibilita, então, que a conversa sobre o uso de celulares em salas de aula seja mais explorada. “O que essa lei trouxe de melhor foi abrir esse debate, porque as pessoas estão tendo que se debruçar sobre essa discussão”, finaliza a professora. 

O mural de Lélia Gonzalez transforma os prédios cinzas da Uerj

O mural de Lélia Gonzalez transforma os prédios cinzas da Uerj

Por Samira Santos

A Uerj carrega, em seus corredores e salas de aula, a história de diversas personalidades que transformaram o pensamento acadêmico e social do Brasil. Entre elas, destaca-se Lélia Gonzalez, uma intelectual, professora e ativista negra, cuja trajetória inspirou gerações e segue ecoando até os dias atuais. Em homenagem a essa figura emblemática, o evento “Ânima 2025” trouxe uma nova forma de resistência para dentro da Universidade: um mural vibrante e simbólico que, através da arte, ressignifica os espaços da instituição.

Mural da Lelia e a artista J.Lo (Foto: Equipe Coart)
Mural da Lelia e a artista J.Lo (Foto: Equipe Coart)

O legado de Lélia

 Nascida em 1935, em Belo Horizonte, Lélia Gonzalez conquistou seu espaço na academia em uma época em que a presença de mulheres negras no ensino superior era praticamente inexistente. Graduou-se em História e Filosofia na então Universidade do Estado da Guanabara (UEG), atual Uerj, e prosseguiu seus estudos na PUC-Rio, onde fez mestrado em Comunicação e doutorado em Antropologia Política. Sua produção intelectual foi marcada pela interseção entre gênero e raça, culminando no conceito de “Amefricanidade”, que destaca as experiências negras na América Latina como um elo essencial para compreender as estruturas raciais do continente.

A professora Leda Costa, especialista no pensamento de Lélia Gonzalez, destaca a importância de sua obra: “O pensamento de Lélia é um pensamento riquíssimo para entender o racismo no Brasil, para entender o sexismo no Brasil. E é um pensamento muito inovador também, já que Lélia recorre à psicanálise e tem um papel muito atuante. Ela foi uma pensadora militante da causa do feminismo negro, uma militante contra o racismo, alguém que conseguiu conciliar uma vida acadêmica com uma intensa atuação política”.

Sobre o conceito de “Amefricanidade”, a professora Leda acrescenta: “Lélia desenvolveu muitos debates no Colégio Freudiano e teve contato com psicanalistas como Carlos Magno, que a influenciou bastante. Além disso, ela estava muito antenada com pensadores como Frantz Fanon e Paul Gilroy, que já apontavam para a necessidade de repensar a relação entre a África e a América. Daí surge a ideia de “Amefricanidade”, que propõe uma matriz africana essencial para compreender as dinâmicas do continente americano, diferente da concepção de afro-americano centrada nos Estados Unidos”.

 
Livro da Lélia sobre feminismo negro (Foto: Reprodução)
Livro da Lélia sobre feminismo negro (Foto: Reprodução)

 

Seu ativismo se expandiu para o Movimento Negro Unificado (MNU), no qual desempenhou papel fundamental na luta contra o racismo no Brasil. Inspirados por esse legado, a Coart se reuniu para transformar as paredes cinzentas da Universidade em um manifesto visual. O mural criado no evento “Ânima 2025” transcende a estética e se torna um símbolo de resiliência e empoderamento.

A iniciativa para a criação do mural partiu da artista visual J.Lo Borges, que grafitou um retrato de Lélia Gonzalez sorrindo, com sua característica faixa no cabelo. O mural foi composto por cores quentes para transmitir aconchego, criando um espaço de memória dentro da Uerj. J.Lo Borges, que atualmente cursa mestrado em relações étnico-raciais, ressaltou a importância do mural não apenas como uma homenagem, mas como um lembrete constante do pensamento crítico de Lélia Gonzalez.

A professora Leda Costa também reforça essa necessidade: “Lélia não era uma mulher somente de gabinete, ela mantinha contato constante com a realidade das mulheres negras marginalizadas no Brasil. Ela questionava a concepção tradicional do feminismo, que priorizava uma visão ocidental e branca da mulher, e reivindicava a centralidade da mulher negra nesse debate. Isso precisa ser estudado e discutido amplamente dentro da universidade”.

A intervenção artística não passou despercebida. Alunos, professores e funcionários da Uerj rapidamente transformaram o mural em ponto de encontro e reflexão. Para muitos estudantes negros, a imagem de Lélia representa a possibilidade de pertencimento em um espaço historicamente excludente. A arte, que se impõe sobre a paisagem cinzenta da Universidade, também provoca debates sobre a permanência de intelectuais negros nos currículos acadêmicos.

A criação do mural marca um momento simbólico na Uerj, mas também levanta questões sobre o compromisso da universidade em valorizar efetivamente o legado de Lélia Gonzalez. Professores e estudantes seguem mobilizados para garantir que seu pensamento não seja apenas homenageado, mas incorporado ao debate acadêmico de forma estruturada.

Lélia Gonzalez enxergava a educação como ferramenta de emancipação e transformação social. Seu legado é um convite para que a Universidade se torne, de fato, um espaço plural, onde diferentes vozes possam ser ouvidas e valorizadas. E, agora, esse chamado está gravado, em cores vivas, nos muros da Uerj, resistindo ao tempo e inspirando novas gerações.

Assédio nas universidades e seus impactos

Assédio nas universidades e seus impactos

Um retrato da violência silenciada em espaços acadêmicos

 

Por Samira Santos

O ambiente universitário, frequentemente idealizado como um espaço de aprendizado e transformação, tem sido palco de uma problemática séria: o assédio. Dados da Controladoria-Geral da União (CGU) revelaram 557 denúncias de assédio em instituições públicas federais em 2024, o que equivale a uma média de duas por dia. Esses números expõem a persistência de uma cultura de silenciamento e impunidade em relação a essa prática, que afeta professores, funcionários e, principalmente, estudantes, especialmente mulheres.

Assédio moral e sexual no estágio (Foto: Pexels)
Assédio moral e sexual no estágio (Foto: Pexels)

 O silêncio das denúncias e subnotificações

Apesar da gravidade do problema, pesquisas apontam que a maioria dos casos de assédio não chega ao conhecimento das autoridades. Um levantamento realizado em 2022 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) indicou que apenas 10% das ocorrências são formalmente registradas. A subnotificação é reflexo de uma série de fatores, como medo de represálias, falta de apoio institucional e a burocracia envolvida nos processos de denúncia.

Na Universidade de Brasília (UnB), por exemplo, em uma década, apenas seis processos administrativos foram abertos relacionados ao tema, e apenas um resultou em punição. Recentemente, um professor da instituição foi suspenso por 15 dias após ser acusado de assédio sexual por duas colegas, gerando críticas sobre a falta de penalidades aplicadas.

Assédio e suas várias formas

O assédio nas universidades pode se manifestar de diferentes formas. O assédio moral envolve condutas abusivas reiteradas, como humilhações e ameaças, que degradam o ambiente acadêmico e afetam a saúde mental das vítimas. Já o assédio sexual inclui desde comentários inapropriados até exigências explícitas de favores sexuais, muitas vezes por pessoas em posições hierárquicas superiores, como professores ou orientadores.

A legislação brasileira tem avançado no enfrentamento a essas práticas. Desde 2001, o Código Penal inclui o assédio sexual como crime, com pena de detenção de um a dois anos. Em 2018, o artigo 215-A ampliou a abrangência para incluir a importunação sexual. Contudo, lacunas permanecem, especialmente na proteção de estudantes em relação a seus orientadores, onde o poder hierárquico é muitas vezes utilizado como instrumento de coerção.

O impacto na saúde mental

O assédio não afeta apenas o desempenho acadêmico, mas também a saúde mental das vítimas. A professora de psicologia Anna Uziel explica que a queda no rendimento, isolamento e desinteresse estão entre os sinais que podem indicar sofrimento psicológico. A professora sugere abordagens que vão além do suporte individual. “Grupos de acolhimento são importantes para fortalecer os estudantes e criar espaços de troca, onde possam compartilhar experiências e encontrar soluções coletivas”.

“Um primeiro ponto que acho muito importante é que, quando falamos de assédio, estamos falando de relações de poder”, afirma Uziel. Ela destaca que a universidade, muitas vezes, apresenta relações hierárquicas e verticalizadas que podem gerar conflitos. “Talvez agora, com o uso desse termo [assédio], estejamos conseguindo falar sobre essas questões e tratar dessas relações de poder que já causam sofrimento”.

O ambiente acadêmico deveria ser um espaço de incentivo e crescimento, mas para muitas mulheres torna-se um local de medo e retraimento. Dados do Instituto Avon,  em 2015, apontam que 67% das universitárias já sofreram algum tipo de violência no ambiente universitário, sendo o assédio sexual a forma mais recorrente, com 56% das alunas relatando experiências desse tipo. “A cultura do silêncio é ainda mais grave do que a da impunidade. Quando não podemos falar ou não encontramos escuta, perpetuamos o ciclo de violência”, explica a professora.

A face extrema da violência de gênero

O feminicídio, expressão máxima da violência de gênero, é um alerta de como práticas abusivas podem evoluir para consequências trágicas. Desde a sanção da Lei do Feminicídio, em 2015, pelo governo Dilma Rousseff, mais de 10 mil mulheres foram vítimas desse crime no Brasil. Em 2024, a Lei 14.994 aumentou a pena para 40 anos de reclusão para feminicídios, demonstrando a gravidade desse tipo de violência.

O discurso de Dilma ao sancionar a lei permanece atual: “Se mete a colher sim, principalmente se resultar em assassinato”. Essa fala ressalta a importância da denúncia e do apoio de familiares e amigos para evitar desfechos fatais.

A cultura do silêncio e a impunidade

A universidade, reflexo da sociedade, reproduz as mesmas opressões de gênero, classe e raça que estruturam a vida social. Pesquisas revelam que mulheres negras e indígenas estão ainda mais vulneráveis a violências, como o racismo interseccional. A escritora Grada Kilomba descreve essas experiências como “cicatrizes históricas que se perpetuam nas estruturas sociais e acadêmicas”.

Além disso, a falta de preparo institucional agrava a situação. Em 2022, apenas 25% das universidades possuíam políticas específicas para enfrentar o assédio, segundo pesquisa da professora Neiva Furlin da Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc). Os Movimentos como o #MeToo e denúncias públicas têm pressionado por mudanças, mas a resistência à implementação de protocolos efetivos ainda é um desafio.

O silenciamento das vítimas (Foto: Freepik)
O silenciamento das vítimas (Foto: Freepik)

Caminhos para a transformação

A aprovação da Lei 14.540/2023, que institui o Programa de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Sexual em instituições públicas, é um passo importante. Ela obriga universidades e órgãos públicos a criar mecanismos de prevenção, acolhimento e responsabilização. Contudo, especialistas alertam que políticas só serão eficazes se acompanhadas de mudanças culturais profundas.

Iniciativas como a Comissão Permanente de Combate aos Assédios da Uerj mostram as estratégias integradas para enfrentar o problema. A Uerj implementou um fluxo institucional para acolher denúncias, apurar casos e promover ações educativas. Embora tenha criado uma cartilha sobre o combate do assédio sexual e moral, a universidade ainda encara dificuldades no acolhimento em sua Ouvidoria. Apesar dos avanços, a universidade ainda enfrenta desafios, como a sobrecarga de trabalho de membros da comissão e a falta de adesão de alguns setores. 

Inteligência Artificial e a luta contra o câncer de mama: desafios, potenciais e realidade brasileira

Inteligência Artificial e a luta contra o câncer de mama: desafios, potenciais e realidade brasileira

Outubro passou, mas a prevenção ao câncer de mama deve ser feita ao longo do ano todo, alertam especialistas

Por Samira Santos

O câncer de mama é o tipo de câncer mais comum entre mulheres em todo o mundo, representando cerca de 28% dos novos casos de câncer em mulheres no Brasil, segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde). Embora raro em homens, a doença também afeta o sexo masculino, correspondendo a menos de 1% dos casos. Com aumento na incidência após os 50 anos e diversos fatores de risco associados, como idade e obesidade, a luta contra o câncer de mama enfrenta desafios que vão desde a falta de conscientização até limitações tecnológicas no diagnóstico precoce.

 

Exame de mamografia (Foto: Agência Brasil)
Exame de mamografia (Foto: Agência Brasil)

 

A nova fronteira: Inteligência Artificial no diagnóstico de câncer do mama

Com a evolução das tecnologias de diagnóstico por imagem, como mamografias e ultrassonografias, uma das inovações mais promissoras é a inteligência artificial (IA). A aplicação de IA no campo da medicina, especialmente no diagnóstico de câncer de mama, promete transformar a detecção precoce. Para entender melhor como a IA pode ajudar no combate ao câncer de mama, entrevistamos o Dr. Luiz Fernando Amaral, mastologista e chefe do Ambulatório de Mastologia do Hupe-Uerj. Com experiência acumulada desde 1997, ele compartilha os benefícios e as limitações do uso de IA no Brasil, trazendo uma visão prática e realista sobre o tema.

 

Questionado sobre as vantagens da IA no diagnóstico precoce do câncer de mama, o Dr. Luiz destaca que o uso representa “um grande avanço, principalmente na leitura de mamografias, ultrassons e ressonâncias magnéticas”. Ele explica que a tecnologia ajuda a identificar padrões complexos e sutis no tecido mamário que podem indicar a presença de um tumor em estágio inicial, o que seria impossível de detectar pelo olho humano.

 

Ainda assim, o Dr. Luiz alerta para a realidade dos mamógrafos no Brasil: “Apenas 60% dos mamógrafos no Sistema Único de Saúde (SUS) são digitais. Então, temos que ter cautela com o entusiasmo pela IA, pois essa tecnologia ainda não é amplamente acessível e enfrenta desafios estruturais”. Esse cenário revela um desafio importante: enquanto países desenvolvidos avançam rapidamente no uso de IA, o Brasil ainda precisa enfrentar a falta de equipamentos modernos.

 

Embora a mamografia digital seja uma ferramenta central, o Dr. Luiz reforça a importância de métodos complementares, como ultrassonografia e ressonância magnética. “Na maior parte do Brasil, a acessibilidade a esses exames ainda é limitada”, observa. Segundo ele, a detecção precoce é possível com mamografia anual, especialmente para mulheres a partir dos 50 anos. Ele destaca a necessidade de melhorar a cobertura e acesso ao exame, inclusive recomendando o início do rastreamento aos 40 anos, conforme indica a Sociedade Brasileira de Mastologia.

 

Com modelos de IA desenvolvidos em instituições como o MIT, hoje é possível prever o câncer de mama com até cinco anos de antecedência. Esses sistemas analisam um vasto banco de dados e identificam padrões associados ao risco de câncer. “A IA pode sinalizar alertas em casos onde há histórico familiar, aumentando as chances de detectar o câncer em estágios iniciais. Entretanto, a aplicabilidade é limitada no Brasil, onde o sistema de saúde ainda carece de mamógrafos digitais em grande parte do país”, explica o Dr. Luiz.

 

Ele ressalta que, embora os algoritmos sejam promissores para auxiliar na avaliação de risco, uma boa anamnese e a integração com bancos de dados específicos de cada país são cruciais para adaptar a tecnologia à realidade local. Esse tipo de IA pode ser especialmente útil para identificar padrões de risco em pacientes que apresentam histórico familiar de câncer.

 

O avanço da IA poderia impactar a frequência e tipo de exames recomendados, mas, segundo Dr. Luiz, “antes de implementar a IA em grande escala, o Brasil precisa assegurar que todas as mulheres tenham acesso à mamografia”. Com o rastreamento adequado, mesmo antes do uso da IA, já seria possível aumentar significativamente a taxa de detecção precoce e reduzir a mortalidade. Para ele, o uso da IA pode ser um ganho importante no futuro, mas que ainda está distante da realidade brasileira.

 

Limitações e realidade brasileira

A prevenção continua sendo uma arma fundamental contra o câncer de mama. Dr. Luiz Fernando explica que, no caso das mulheres, fatores como a gravidez entre os 20 e 30 anos e o aleitamento materno reduzem o risco. Após a menopausa, manter uma rotina de atividade física e evitar o sobrepeso são medidas eficazes para prevenir a doença. “A falta de conscientização sobre o rastreamento é um desafio. Ainda há muitas mulheres que nunca fizeram uma mamografia, e muitos não sabem que homens também podem ter câncer de mama”.

 

Mesmo em países de primeiro mundo, a IA para o diagnóstico de câncer ainda está em fase inicial. O Dr. Luiz alerta para o problema estrutural de base no Brasil, onde o acesso a equipamentos modernos é uma barreira significativa. “Se conseguirmos garantir que todos os mamógrafos do SUS sejam digitais, já seria um avanço importante. A IA é promissora, mas ainda não é uma realidade para a maioria das localidades do país, que carecem de infraestrutura adequada”.

 

Importância da prevenção no outubro rosa (Foto: Canva)
Importância da prevenção no outubro rosa (Foto: Canva)

Ele finaliza com uma visão cautelosa, enfatizando que a inteligência artificial, embora revolucionária, ainda precisará de muito tempo e investimentos para estar plenamente acessível em um sistema de saúde tão desigual quanto o brasileiro.

 

A inteligência artificial surge como uma das principais promessas na luta contra o câncer de mama. Contudo, sua implementação no Brasil esbarra em limitações tecnológicas e estruturais. Como destaca o Dr. Luiz Fernando Amaral, a IA será uma grande aliada na medicina, mas é preciso garantir que o básico — como mamógrafos digitais acessíveis em todo o país — esteja ao alcance de todos.

 

Quatro em cada cinco jovens brasileiros enxergam o futuro como assustador devido às condições climáticas

Quatro em cada cinco jovens brasileiros enxergam o futuro como assustador devido às condições climáticas

Vice-diretora do Instituto de Psicologia da Uerj explica os efeitos da ansiedade climática

Por: Manoela Oliveira

Foto: Adobe Stock

Um levantamento global da Universidade de Bath publicado na revista The Lancet Planetary Health revelou que 85% dos jovens brasileiros consideram o futuro assustador em razão das mudanças ambientais. O estudo teve a participação de 10 mil pessoas entre os 16 e os 25 anos, em 10 países (Austrália, Brasil, Finlândia, França, Índia, Nigéria, Filipinas, Portugal, Reino Unido e Estados Unidos).

De acordo com a pesquisa, as mudanças climáticas provocam consequências para o futuro e a saúde dos jovens e das crianças, sendo esse grupo vulnerável à ansiedade climática. Esse termo, segundo a Associação Brasileira de Letras (ABL), se refere ao “estado de inquietação e angústia desencadeado pela expectativa de graves consequências das mudanças climáticas e pela percepção de impotência diante dos danos irreversíveis ao meio ambiente”.

Para Laura Quadros, vice-diretora e professora do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a ecoansiedade ou ansiedade climática impacta a sociedade como um todo. Ela explica que: “Temos que entender essa noção como algo coletivo, não como uma questão que acomete um indivíduo ou uma categoria de indivíduos”. Cerca de 50% dos brasileiros possuem sua rotina afetada devido às mudanças climáticas, de acordo com o The Lancet Planetary Health.

 

Foto: Reprodução própria, com o uso dos dados do The Lancet Planetary Health
 
 
 
 
 

O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas comprovou que a atual crise climática é sem precedentes e as tragédias ambientais extremas podem se tornar cada vez mais frequentes. Segundo Laura, a desesperança é uma das consequências da ecoansiedade.“Quem tem hoje 15 ou 20 anos não vai ver certas melhoras no planeta”, conclui a professora. Porém, a ansiedade climática pode servir como um mecanismo de mobilização popular, especialmente entre os jovens. 

Laura destacou que a ecoansiedade estimula os jovens a desenvolverem um senso de compromisso maior com o planeta. “Não temos mais uma responsabilidade romântica, mas sim uma noção de sustentabilidade”, complementa. Um estudo da Escola de Comunicação, Artes e Design da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC – RS) revelou que cerca de 70% dos jovens brasileiros praticam alguma atitude sustentável.

Beatriz Evaristo, estudante de 19 anos de farmácia na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), possui uma visão pessimista sobre o futuro por causa das tragédias climáticas. Para ela, sua maior preocupação é a incerteza do que acontecerá nos próximos anos. Essa é a tendência da maioria dos brasileiros, de acordo com o estudo da Universidade de Bath. Os brasileiros alegaram estar ansiosos (62,5%), tristes (69%), nervosos (64%) e com medo do futuro (72,5%). 

Maria Eduarda Galdino, jovem de 19 anos e aluna de jornalismo da Uerj, comenta que o governo não está fazendo ações eficazes para mitigar as crises climáticas.  Maria Eduarda está entre os cerca de 79% dos brasileiros que acreditam que as autoridades estão falhando em conter as mudanças ambientais, segundo The Lancet Planetary Health. O Brasil foi o país com o maior número de pessoas que relataram se sentirem traídas pelos governadores, com 77% dos entrevistados, em comparação com 58,5% da média global. 

A regulamentação da internet pode vir a ser uma forma de diminuir a ecoansiedade pela grande carga de informação nas redes sociais. De acordo com uma pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), cerca de 72% das crianças avaliadas tiveram um aumento na depressão, na hiperatividade e na ansiedade devido ao uso excessivo de telas. 

Laura explica que é preciso “oferecer outras alternativas e criar outras oportunidades no campo das escolas e da família”. A professora citou a implementação da educação ambiental e financeira nas instituições educativas para promover a discussão da ecoansiedade, além de estimular práticas sustentáveis.

13 de maio: data simbólica, mas será pelo motivo certo?

13 de maio: data simbólica, mas será pelo motivo certo?

Há 143 anos nascia em Laranjeiras, Zona Sul do Rio, o escritor e jornalista Lima Barreto

Por Everton Victor

Lima Barreto. / Reprodução: UFMG
 
 
 
 

A abolição dos negros, em 1888,  é “celebrada” neste dia, apesar de críticas do movimento negro em comemorar a data. Curiosamente, neste mesmo dia, alguns anos antes, em 1881, nasceu no Rio de Janeiro um escritor negro que se tornou um símbolo da literatura brasileira. Encantou o Brasil com o dom da palavra, ao trazer para suas obras a sensibilidade, seu olhar aguçado do dia a dia, desabafos, sem perder o lado crítico, se tornando uma representatividade antes mesmo desta palavra ficar em alta. O nome dele é Afonso Henriques de Lima Barreto.

Já na infância, aos 6 anos, Lima Barreto teve que lidar com a morte de sua mãe, a professora Amália Augusta, vivendo com seus irmãos e seu pai, o tipógrafo João Henriques. Carmen Lúcia,  professora da Uerj e escritora do livro “Lima Barreto em quatro tempos”, explicou como ele era um incansável estudioso e apesar das dificuldades nunca parou, frequentando espaços destinados à elite carioca. “Ele estudou no Liceu Popular Niteroiense e depois foi para a Escola Politécnica, com problema de saúde do pai, precisa assumir a família, e se tornar funcionário público, ficando difícil seguir na Politécnica”, acrescenta Carmen.

Na construção de seus textos, Lima também escreveu o que chamava de “retalhos”, diversos cadernos com suas anotações, leituras feitas e, curiosamente, recortes de jornais.  A professora ressalta que Lima Barreto não estava à parte das questões políticas da época. “Ele batia em seus textos em questões que muitos intelectuais defendiam (…) Nacionalistas, que culpabilizam indivíduos pobres,  que diziam que o Brasil não é uma nação civilizada”. Ao mesmo tempo, a linguagem nas obras dele estava próxima das ruas, de forma “lúdica” que ele aprendeu nos jornais. Já em maio de 1918 reúne suas crônicas no volume Mágoas e sonhos de um povo, criticando as reformas urbanas.

  • Influências

O escritor, durante a juventude, era um assíduo estudioso, estando inserido em debates sobre o contexto nacional e internacional. Escritores russos, como Tolstoi e Dostoievsky estavam presentes nas leituras de Lima Barreto. “Foi um dos primeiros a divulgar a literatura russa no Brasil”, afirmou a professora. Na revista A.B.C, Lima lançou o Manifesto Maximalista, que defendia uma sociedade diferente da que emergia no Brasil, abordando concentração de renda e terras, legalização do divórcio, e a revolução russa.

A professora aponta uma curiosidade de Lima:  mesmo ele sem ir para a Europa, ele indicava para os amigos o que visitar por lá. “Ele que estava aqui sabia mais do que as pessoas que iam para lá, ele aproveitava para pedir livros”.  Aliado à literatura, o contexto dos negros internacionalmente também era foco de leituras do escritor. “Ele estava a par do que acontecia fora do país, uma vez com os amigos na França ele pediu o livro “Le Préjugé Des Races” (O preconceito racial), do escritor Jean Finot, o único intelectual francês da época contra a teoria das raças”, explica. 

  • Jornalista Lima Barreto

Ainda na juventude ganhou reconhecimento cedo entre seus pares, contribuindo em jornais. “Desde a Escola Politécnica ele já colaborava em jornais, como A Tagarela”, afirma Carmen.  No Jornal do Commercio publicou em folhetins uma de suas mais notórias obras, o romance “Triste fim de Policarpo Quaresma”(1916), sendo considerado um pré-modernista.  Também teve passagem na revista Floreal, em 1907, nos periódicos Correio da Manhã, revista Careta, Gazeta da Tarde, revista Fon-Fon, entre outros. 

Uma de suas mais notórias produções jornalísticas é uma série de reportagens em 1905 sobre o Subterrâneo do Morro do Castelo para o jornal Correio da Manhã. Sendo uma mistura da ficção de tesouro enterrado no morro, ao mesmo tempo que traz uma denúncia sobre os malefícios da reforma urbana. Essa série de reportagens se tornou um livro, disponível até hoje. Em suas obras é notória a sátira e as ironias e caricaturas que estavam presentes nas obras de diversos escritores do início do século XX.

  • Linguagem Popular

Parte da Crítica atribui ao escritor Lima Barreto uma baixa qualidade linguística, por sua linguagem de fácil entendimento, o que para a professora Carmen não se sustenta, pois ele incorpora nesta fácil linguagem ideias de outros escritores e filósofos. “Ele tem um método que contradiz aquilo que a gente lê na Crítica e no senso comum, a gente lê que o Lima produzia de bar em bar, como se aquela produção viesse por acaso, mas não é bem assim, é muita pesquisa e muito estudo”.

A fase conturbada de Lima, o alcoolismo, era um problema presente, mas ele tinha consciência disso. “É interessante a gente ressaltar que a todo tempo existe uma auto consciência desse problema. Nos diários, ele fazia comentários que tinha que parar”, afirma a professora. Para ela, é um erro “justificar a obra por esse vício”.

Lima Barreto tentou duas vezes ingressar na principal instituição literária do país, a Academia Brasileira de Letras, e nas duas vezes foi negado – na primeira tentativa, seu pedido foi desconsiderado ainda na inscrição. De acordo com Carmen Lúcia, “não há um fator único que justifique isso. Há um viés político de poder que justifica a entrada de uns e não de outros. O Lima cronista e que usa a tribuna da imprensa não é um Lima que agradava todo mundo”. A Academia deu menção honrosa perto do fim da vida do autor, em 1920, pelo livro Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá.

  • Racismo

A questão racial está presente não só nas obras, mas nas suas fases e vivências na cidade e no ambiente intelectual. Carmen classifica em três pontos o racismo e seu impacto na vida de Lima Barreto. “Quando ele usa a tribuna da imprensa denunciando o racismo na cultura brasileira usando todos os argumentos dos escritores que ele lia na época para falar das absurdidades que aconteciam em termos de negligência, violência e opressão, ele comentava com muita segurança sobre o massacre dos negros nos Estados Unidos depois da guerra civil e dizia: olha isso está acontecendo no Brasil”.  

A construção dos textos como escritor, para Carmen, é influenciada pela questão racial. Ela cita o romance “Clara dos Anjos” (1948), publicado após sua morte,  que traz críticas sociais e explora a construção da consciência racial da personagem. Enquanto no periódico Diário Íntimo, mostra como a questão racial o formou. “Quando Conceição Evaristo fala em escrevivência ela amplia esse processo de que sou eu e toda uma descendência que carrego comigo, isso me define, então ela fala da história de muitos, mas parte da primeira pessoa, parte da sua experiência, então é esse movimento que Lima capta desses pensadores do início do século e ele aprofunda em sua literatura”.

Legado

Jornal homenageando a vida de Lima Barreto. / Reprodução: Brasil na Foto/Gov
 
 
 

Lima Barreto morreu precocemente, aos 41 anos, de ataque cardíaco por complicações do alcoolismo. Além do alcoolismo, lidou com a depressão e com sua breve passagem pelo hospício, que é abordada em sua obra Diário do Hospício, publicada em 1953.  O escritor acumula um acervo de obras variadas, de contos, romances, diários, crônicas, artigos e reportagens.

Lima Barreto é doutor honoris causa pela UFRJ, onde estudou na Escola Politécnica, título que só veio 101  anos depois de sua morte. Ele também já foi homenageado na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, em 1982, pela Unidos da Tijuca. Além de contar com outros títulos, filmes, nome de ruas e biografias em sua homenagem.  

Para o escritor Anderson Shon, a literatura negra perpassa as obras de Lima Barreto. Um dos livros de Anderson, o “Estados Unidos da África”, produzido em parceria com Daniel Cesart, traz o empoderamento negro em quadrinhos para o público adulto. Ele explica que ao longo de mais de 10 anos publicando livros, sendo mediador e palestrante da Bienal da Bahia, ainda é um desafio ser reconhecido pela Academia. “A gente não é visto pela Academia como saber, a menos que a gente esteja estudando alguém que está morto (…) A gente não precisa que uma geração morra para estudar ela”. No último sábado, o escritor lançou o romance “Não termine comigo, Joana”.

De acordo com a secretária dos Comitês de Cultura Roberta Martins, o Ministério da Cultura tem como princípio fomentar artistas negros, através de ações afirmativas nos seus principais projetos. “A gente tem a Lei Paulo Gustavo (R$3,8bi), a Lei Aldir Blanc (R$3bi), os artistas negros têm um percentual destinado obrigatoriamente para execução em municípios e estados para as suas produções, e isso é fundamental porque está incidindo efetivamente no financiamento”, afirma a secretária.

Roberta conta que a Cultura faz um resgate das personalidades negras através de editais, e  quando celebra a memória dessas personalidades. “A Fundação Palmares tem uma espécie de panteão de personalidades negras que foi retomado nesse ministério, estão lá Lima Barreto, Jurema Batista, Léa Garcia, Martinho da Vila”. Para  a secretária, esse resgate é uma ponte com a população negra de hoje, “é trazer os brasileiros para próximo de nós”, ressalta.

Olimpíada de Paris 2024 quebra recorde de participação feminina

Olimpíada de Paris 2024 quebra recorde de participação feminina

Pela primeira vez na história, as mulheres representam 50% do total de atletas nos Jogos Olímpicos  

Por: Everton Victor e Manoela Oliveira

Getty Images / (Foto: Sandro Di Carlo)
 
 
 

Após 128 anos da realização dos Jogos Olímpicos, as atletas do gênero feminino representam pela primeira vez 50% dos participantes nas Olimpíadas. Ao todo são 10.500 atletas – sendo metade homens, metade mulheres –  presentes nas competições durante 26 de julho a 11 de agosto de 2024 na capital francesa. A paridade de gênero alcançada é um marco no evento, que na sua primeira edição, em 1896, proibiu a participação de atletas mulheres.

Até o momento, o Brasil tem 216 vagas garantidas para as Olimpíadas de Paris. Desse número, cerca de 100 atletas para os jogos serão mulheres, de acordo com a lista de vagas e modalidades que o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) detém. A quantidade ainda pode mudar por conta de disputas em algumas modalidades que valem vagas para as Olimpíadas.

O pioneirismo na paridade de gênero é um dos marcos desta edição que contará com a estreia de duas modalidades. A novidade é o Breakdance, a mistura da dança e da música; nessa disputa, dois atletas se enfrentam, enquanto o DJ toca uma música aleatória, e quem performar melhor em 60 segundos ganha. Outro esporte adicionado é o Caiaque Extremo, uma competição entre quatro barcos que percorrem um trajeto e quem chegar primeiro vence. Ao todo serão 48 modalidades presentes nesta edição.

Se por um lado a paridade está no âmbito dos atletas, essa realidade ainda não chegou para os cargos de liderança nos Comitês Olímpicos. No Brasil, segundo o COB, nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2021, o quantitativo de mulheres na comissão técnica era de apenas 10% do total de membros, já entre as chefes de equipes na comitiva brasileira é de 20%.

Para Silvio Telles, professor do Instituto de Educação Física da Uerj e da Escola de Educação Física e Desportos da UFRJ, o desafio de inclusão das mulheres no esporte deve ser enfrentado por todos, inclusive pela mídia. Taciana Pinto, gerente de Desenvolvimento e Mulher no Esporte do COB explica que “diversos levantamentos mostram que o tempo de mídia para o esporte feminino é muito menor que o masculino, e que muitas vezes as atletas são retratadas pelos seus atributos físicos ou familiares e não pelo seu desempenho esportivo”. De acordo com ela, com a inclusão das atletas na mídia, jovens meninas são encorajadas a perseguirem seus sonhos no campo esportivo. 

Paris. Reprodução: Agência Brasil

Desigualdade de gênero no cenário esportivo

O início da era moderna das Olimpíadas foi em 1896, porém as mulheres começaram a participar dos jogos em 1900, representando apenas 2,2% do número de atletas. A expansão das modalidades foi lenta, mas, ao longo dos anos, as mulheres conquistaram o direito de competirem em esportes como o atletismo e o vôlei, que eram proibidos pelo Comitê Olímpico Internacional (COI).

Depois de 124 anos desde a primeira participação feminina nas Olimpíadas, ainda existem barreiras para a igualdade de gênero nos esportes. Silvio discutiu as dificuldades das mulheres no cenário esportivo, destacando o preconceito como um dos motivos agravantes. “Se constrói, dentro do campo esportivo, uma representação social de que a mulher não é adequada para aquele tipo de prática”, afirma o professor. O levantamento global realizado pela Nike e pela Dove revela que, só no Brasil, cerca de 89% das meninas acreditam que deveria haver mais inclusão feminina nos esportes. 

Fernanda Barbosa, formada em Educação Física pela Uerj, afirma que muitas mulheres desistem de suas carreiras no esporte devido à falta de incentivo financeiro. Ela reforça que: “Eu tenho que escolher entre estudar e trabalhar ou jogar bola, tive que escolher estudar e trabalhar”. De acordo com Fernanda, as atletas possuem dificuldade em conciliar as práticas esportivas com o trabalho ou o estudo. “O que falta no Brasil é o investimento”, conclui. 

Investimentos na inclusão das mulheres no esporte

O COB vem trabalhando para fornecer maior qualidade no desenvolvimento das jovens atletas, segundo Tatiana. “O mapeamento da estrutura oferecida para as seleções femininas, seja na quantidade de competições nacionais e internacionais, seja na composição da comissão técnica, e também pelo investimento direcionado às mulheres no esporte”, ressalta.

O COI, em parceria com a ONU Mulheres, desenvolveu o programa “Uma Vitória Leva à Outra” (UVLO). O projeto visa garantir espaços seguros para as meninas na área esportiva, proporcionando oficinas temáticas sobre autoestima, liderança, saúde e direitos sexuais e reprodutivos. De acordo com a ONU Mulheres, o programa é um legado da Olimpíada do Rio 2016 e alcançou 217.000 mulheres em 25 países.

Agenda e Notas

Agenda e Notas

Por : Samira Santos

MAIO:

1. 09/5, 8h às 17h30 – II Seminário do Ambulatório Identidade – Transdiversidade

⬤ O Ambulatório Identidade – Transdiversidade da PPC e do Hupe da Uerj realiza seu II Seminário nos dias 8 e 9 de maio, com o tema “A integralidade do cuidado em Saúde da população trans no SUS”. Local: auditório 11, bloco F, campus Maracanã. Inscrições gratuitas através de formulário eletrônico. Doações de alimentos serão recebidas.

2. 09/5, 19h às 21h – Espetáculo ‘Mães do Samba’ estreia no Teatro Noel Rosa

⬤ O Coral “O Canto das Lavadeiras” apresenta o espetáculo “Mães do Samba” nos dias 9 a 11 de maio, às 19h, no Teatro Noel Rosa, campus Maracanã. Direção geral de Analimar Ventapane. Ingressos disponíveis online.

3. 15/5, 10h às 12h – Conferência sobre Covid longa

⬤ O IMS da Uerj recebe Ilana Löwy para discutir “Covid longa”. A conferência abordará os distúrbios funcionais pós-Covid. O evento terá tradução simultânea e será transmitido ao vivo pelo YouTube.

4. 16/5, 10h30 às 16h – Evento de Saúde Mental

⬤ O Pebit da Uerj e o Cetreina promovem um evento sobre saúde mental e emocional, com palestra e exposição de arte. Não é necessária inscrição prévia e serão emitidos certificados. Será realizado no auditório 111, 11° andar, campus Maracanã. 

5. 16/5, 19h às 21h – Show de reggae no Teatro Noel Rosa

⬤ A Banda Blessed se apresenta no Teatro Noel Rosa da Uerj. Os ingressos estão disponíveis online e haverá intérprete de libras.

6. 17/5, 15h às 16h – Musical “A pequena vendedora de fósforos” no Teatrão

⬤ A Divisão de Teatro da Uerj apresenta o musical “A pequena vendedora de fósforos”, adaptado do conto de Hans Christian Andersen. As apresentações ocorrem nos dias 17, 18, 24 e 25 de maio, no Teatro Odylo Costa, filho, campus Maracanã. Organizado pelo projeto Uerj em Casa e pelo Cptec, as sessões são às 15h e 16h. O espetáculo conta a história de uma menina pobre que vende fósforos nas ruas para sobreviver e suas visões misteriosas. Os ingressos estão disponíveis online.

7. 23/5, 9h às 20h – Ajuda com Imposto de Renda

⬤ O projeto “IR na Mangueira e arredores” auxilia moradores da região a preencher a declaração do Imposto de Renda. O projeto oferece auxílio presencial em um único dia próximo ao prazo final da declaração, além de acesso a vídeos e outros conteúdos nas redes sociais. Os serviços ocorrem em três horários, das 9h às 12h, das 13h às 16h e das 17h às 20h, sem necessidade de agendamento, mas sujeitos a vagas limitadas. Os documentos necessários incluem identidade, CPF, cópia da declaração do ano anterior, comprovante de residência, rendimentos e despesas de saúde e educação do exercício de 2023.

8. 24/5, 19h às 21h – Lançamento do disco ‘Momento’

⬤ Rafael José lança seu disco “Momento” no Teatro Noel Rosa da Uerj. Os ingressos estão disponíveis online e haverá intérprete de libras.

JUNHO:

1. 06/6, 9h30 às 17h – Seminário Internacional do CLAM

⬤ O Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos promove o seminário internacional, discutindo a trajetória e perspectivas futuras dos estudos sobre gênero e sexualidade. O evento ocorrerá no auditório do IMS, localizado na sala 6.012, 6º andar do campus Maracanã. A programação completa está acessível no site do seminário. O evento é de acesso público e será transmitido ao vivo no YouTube.